sexta-feira, 10 de dezembro de 2010

União totalitária

 

União totalitária

Livro Teatro e censura: Vargas e Salazar revela que ditaduras de Portugal e do Brasil fizeram parceria para fiscalizar e censurar o teatro. Obra de professora da USP é produto de Projeto Temático da FAPESP (Foto: USP)

Agência FAPESP

Por Fábio de Castro

As ditaduras de Getúlio Vargas, no Brasil (1937-1945), e de António de Oliveira Salazar, em Portugal (1932-1968), colaboraram intensamente – e até assinaram acordos bilaterais – para fiscalizar e censurar o teatro nos dois países. O próprio modelo de controle da expressão artística implantado pelo Estado Novo foi “importado” do regime totalitário português.

As revelações históricas aparecem no livro Teatro e censura: Vargas e Salazar, de Maria Cristina Castilho Costa, professora da Escola de Comunicações e Artes (ECA) da Universidade de São Paulo (USP).

A obra é produto do Projeto Temático "Comunicação e censura: analise teórica e documental de processos censórios a partir do arquivo Miroel Silveira da biblioteca da ECA/USP", apoiado pela FAPESP. O projeto é coordenado por Maria Cristina, que estuda a produção cultural paulista entre 1930 e 1970 a partir da documentação reunida no Arquivo Miroel Silveira , que reúne mais de 6 mil processos de liberação de peças teatrais pelo Departamento de Diversões Públicas do Estado de São Paulo.

O livro teve base em informações extraídas do arquivo, que foi resgatado pelo professor de teatro, diretor, produtor e autor Miroel Silveira (1914-1988) e está sob custódia da Biblioteca da ECA e também do Arquivo Nacional da Torre do Tombo, em Portugal.

“Trabalhando simultaneamente com os dois arquivos, pudemos analisar como a cumplicidade política dos regimes de Vargas e de Salazar se refletia nos palcos, nos órgãos de censura e nas políticas culturais dos dois países. Constatamos que essa cooperação estendeu a presença do teatro português no Brasil, enquanto o modelo de censura salazarista era importado pelo Estado Novo”, disse Maria Cristina à Agência FAPESP.

O livro teve origem no mais recente pós-doutorado da pesquisadora, realizado em 2007 e 2008 na Universidade de Coimbra (Portugal), com Bolsa da FAPESP. Na época, a equipe do Projeto Temático já estava produzindo uma base de dados a partir dos processos censórios reunidos no Arquivo Miroel Silveira.

“Um dos campos mais importantes dessa base de dados é o nome dos autores das peças encenadas no Brasil. Mas, muitas vezes, os arquivos remetem a autores sobre os quais não existem mais registros. Grande parte desses nomes era de origem portuguesa, mas não sabíamos quando se tratava de autores do Brasil ou de Portugal. Queríamos descobrir uma base de dados portuguesa, a fim de descobrir quais peças encenadas aqui eram de autores que moravam em Portugal ou no Brasil”, explicou.

Maria Cristina foi a Portugal e descobriu que não havia no país uma base de dados semelhante. No entanto, a partir de estudos sobre a censura realizados em Portugal por Graça dos Santos, da Universidade de Paris 10 – Nanterre (França), a pesquisadora brasileira descobriu a existência, no Arquivo Nacional da Torre do Tombo, de um arquivo que reunia processos de censura prévia do teatro português.

“O arquivo tinha mais de 11 mil registros sobre a censura ao teatro, mas estava em uma fase inicial de organização e não possuía uma base de dados. Comecei a explorar esses arquivos e logo percebi que havia uma incrível semelhança com os processos de censura brasileiros”, disse.

A pesquisadora passou a investigar também, na Torre do Tombo, outros arquivos que diziam respeito ao Brasil. A relação íntima entre os governos de Vargas e Salazar começou a ficar cada vez mais evidente. O ditador português implantou diversas iniciativas culturais a fim de manter os imigrantes ligados à pátria.

“Essas iniciativas envolviam o teatro de revista, o balé folclórico e as Casas de Portugal abertas no Brasil. Havia registros de que o governo português patrocinava companhias teatrais que vinham encenar suas peças no Brasil. Nas décadas de 1920 e 1930 houve uma grande onda de imigração de portugueses para o Brasil e a preocupação manifesta de Salazar era manter a coesão cultural desses imigrantes”, contou.

Os arquivos mostraram intercâmbios diretos entre o Secretariado Nacional de Informação (SNI) e o Departamento de Imprensa e Propaganda (DIP) – órgãos responsáveis pela censura em Portugal e no Brasil, respectivamente.

“O DIP e o SNI tinham acordos de trocas de informações formalmente estabelecidos. Quando um intelectual brasileiro ia ser recebido em Portugal, por exemplo, o DIP era acionado para informar ao SNI dados sobre o passado e a atividade política do visitante. E vice-versa. Havia uma seção brasileira no SNI e uma seção portuguesa no DIP”, disse.

Os estudos também mostraram que o modelo adotado pelo governo Vargas para a censura prévia, implantado no fim da década de 1930, foi claramente inspirado no modelo salazarista.

“Os modelos tinham trâmites muito semelhantes, com pareceres de três censores, por exemplo. Por outro lado, ambos eram modelos de controle da produção artística voltados para uma visão ufanista da pátria. Os dois procuravam afastar qualquer análise crítica de problemas nacionais, contradições ou conflitos”, disse Maria Cristina.

As anotações dos censores incluíam, por exemplo, indicações relacionadas ao comprimento das roupas no teatro de revista. Em alguns casos, exigiam que cenas que se passavam em um quarto fossem transferidas para uma sala. Havia preocupação com a linguagem, que não devia se aproximar dos termos populares. “Nos dois casos, tratava-se de uma censura estética, moralista e política extremamente conservadora”, disse.

Mesa-redonda

A censura em Portugal, no entanto, era mais rígida do que no Brasil, segundo Maria Cristina. Os censores portugueses eram militares, alguns deles na ativa, outros já aposentados. Os brasileiros eram civis, a maior parte deles “pseudo-intelectuais apadrinhados do governo”.

“Em Portugal, os pareceres, longos e minuciosos, mostravam que os censores eram pessoas que encaravam a censura como uma atividade patriótica. No Brasil, os pareceres eram mais sintéticos e menos rígidos. No entanto, a quantidade de vetos e cortes era mais ou menos a mesma”, disse.

Os estudos constataram também que a proximidade entre as duas ditaduras proporcionou a manutenção da presença do teatro português em território brasileiro em plena década de 1940, quando as tendências modernistas repudiavam a imitação de modelos europeus.

“Na década de 1940 já estávamos em plena época da cultura modernista, que tinha tendência antilusitana. Por isso era intrigante ver, no Arquivo Miroel Silveira, uma imensa quantidade de peças e autores portugueses sobre os quais não havia qualquer referência. Isso fica explicado com a existência de uma parceria internacional envolvendo um modelo de Estado nazifascista que se apoiava nos meios de comunicação, na arte e nos espetáculos para angariar poder”, explicou.

O lançamento oficial do livro será realizado em março no Centro Universitário Maria Antonia, da USP, com uma mesa-redonda. “Vamos trazer professores portugueses e brasileiros que irão debater a questão da censura e as políticas de Salazar em relação ao Brasil e aos imigrantes”, disse Maria Cristina.

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