segunda-feira, 7 de dezembro de 2009

Interpretações do homem simples

Por Fábio de Castro

Agência FAPESP – Terceiro volume de uma trilogia articulada por uma teoria sociológica da relação entre vida cotidiana e História, o livro A Aparição do Demônio na Fábrica, do sociólogo José de Souza Martins, recebeu o terceiro lugar do Prêmio Jabuti de Ciências Humanas de 2009.


Martins é professor titular do Departamento de Sociologia da Universidade de São Paulo (USP) e membro do Conselho Superior da FAPESP. O livro, lançado em 2008, tem como ponto de partida uma série de supostas aparições demoníacas que tumultuaram uma fábrica de São Caetano do Sul (SP), em 1956. O episódio foi testemunhado pelo autor.


Apoio-me na reconstituição do que vi e ouvi, quando era adolescente e trabalhava naquela fábrica, e em entrevistas com diferentes testemunhas da ocorrência para conferir os dados de minha própria memória”, disse à Agência FAPESP.


O método utilizado, definido por Martins como “observação participante retrospectiva”, foi viabilizado pelo que os sociólogos Peter Berger e Thomas Luckmann – autores de A Construção Social da Realidade – chamam de alternação biográfica: o distanciamento biográfico e cultural que permite ao sociólogo tratar objetivamente dados retidos na memória.


A Aparição do Demônio na Fábrica reúne uma série de ensaios que combinam memória e análise sociológica objetiva: A Aparição do Demônio na Fábrica, A gestação do ser dividido: a ferrovia e a modernidade em São Paulo, Subúrbio e periferia, antinomias do urbano, Odores, sons e cores: mediações culturais do cotidiano operário e O ciclo faltante – Interrogando o historicamente ilógico. Todos levam o leitor a um mergulho na vida cotidiana dos bairros operários do ABC paulista.


O ensaio de mesmo nome do livro, segundo Martins, trata de um caso relativo a um problema técnico surgido na linha de produção de uma nova planta industrial, em uma fábrica antiga, que foi interpretado pelas operárias da seção da ocorrência como “manifestação demoníaca decorrente da falta de observância do rito das primícias quando o novo setor entrou em operação”.


Tratava-se de um desencontro entre o conhecimento próprio da engenharia da produção e o conhecimento cotidiano próprio do trabalho. Basicamente, o livro como um todo constitui uma etnografia do imaginário obreiro”, explicou.


A obra trata essencialmente das origens sociais do “Eu” dividido nas relações fabris, um modo radicalmente diferente de ver e compreender o operariado.


Não só o caso da aparição do demônio é a referência do livro, com a análise sociológica da inversão imaginária da realidade fabril para torná-la inteligível, que é o procedimento do homem comum. Mas também o extenso estudo sobre a mediação de sons, odores e cores como demarcadores desse imaginário, em particular na inversão do desenho da casa operária e no surgimento dos jardins domésticos e proletários, um aspecto da cultura operária ainda não estudado no Brasil”, disse.


Consciência social


A Aparição do Demônio na Fábrica encerra uma trilogia sobre o subúrbio operário, iniciada com a publicação de Subúrbio (1992) – que ganhou o Prêmio Jabuti de Ciências Humanas de 1993 – e continuada com A Sociabilidade do Homem Simples, reeditado em 2008.

As três obras, segundo o autor, estão articuladas entre elas por uma teoria sociológica da relação entre vida cotidiana e História – uma teoria da historicidade das ações e relações sociais – representando uma completa reordenação e redefinição da trilogia anunciada em Subúrbio.


Nos três livros, trato de diferentes aspectos do cotidiano, em particular o da relevância das mediações na práxis e nelas a da mentalidade do homem simples, como interpretação primária do processo histórico, matéria-prima da análise sociológica”, disse.

Na trilogia, Martins vai na direção contrária das abordagens predominantes. “No conjunto da obra, estou me antepondo à tendência corrente, em nossa sociologia, no estudo da condição operária, que tem sido a de se limitar à dinâmica de classe, das relações de trabalho, àquilo que supostamente move a sociedade industrial em direção a mudanças e inovações sociais”, afirmou.

A principal preocupação interpretativa é compreender as evidências da cultura conservadora do proletariado regional, que redireciona e atenua a latência da dinâmica das classes sociais para compreensões e metas aquém do historicamente possível.


É o que se perde de vista quando o pesquisador reduz o seu objeto às tensões dos conflitos de interesses. Penso na importância metodológica do pressuposto da totalidade, suas tensões e contradições na determinação dialética da consciência social do homem comum”, disse.


Em Subúrbio, Martins utilizou a análise sociológica para desvendar a integridade do cotidiano que não é apreendido de forma trivial. “Com base em pesquisa documental, tratei da irrupção da História no cotidiano, como o parêntese aberto pela Revolução de 1924, de episódios que documentam a constituição de um cotidiano fragmentário em que o todo oculto não se dá a ver senão na análise científica, negando-se ao imediato da consciência social”, explicou.


As fraturas sociais no espaço urbano são abordadas em A Sociabilidade do Homem Simples. “Trato da diferenciação do espaço urbano, do abismo que separa as possibilidades sociais e culturais da riqueza criada pelo trabalho – que se realizam, porém, na monumentalidade arquitetônica e cultural do centro da metrópole –, das carências e limitações sociais e culturais de quem a produz na periferia e no subúrbio, a espacialidade da alienação, as revelações da dimensão onírica do cotidiano e suas inversões. Essa dimensão onírica foi estudada com base em um banco de sonhos”, destacou o autor.


A Aparição do Demônio na Fábrica

Autor: José de Souza Martins

Lançamento: 2008

Preço: R$ 36

Páginas: 224

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