quinta-feira, 9 de agosto de 2012

O negro no futebol brasileiro - Mario Filho


Ainda não surgiu na literatura esportiva outra obra que tenha sido tão estudada e pesquisada como “O Negro no Futebol Brasileiro”, de Mario Filho. Sessenta e cinco anos após a sua primeira edição em 1947 (Pongetti Editores) ela já foi tema de centenas de análises acadêmicas feitas por gente do mais alto calibre de diversas áreas e estudos da sociedade e do futebol brasileiro. Teve quatro edições, a segunda em 1964, pela Editora Civilização Brasileira, a terceira em 1994, pela Editora Firmo, e, finalmente, em 2003, pela Mauad Editora.

O Negro no Futebol Brasileiro é considerado o maior clássico da literatura esportiva brasileira, mas nem por isso deixou de ser questionada por vários estudiosos. Para muitos, Mario Filho, a semelhança de seu irmão Nelson Rodrigues, teria inventado muitas das histórias narradas no livro. A resposta do próprio autor a esses críticos pode ser encontrada no texto de apresentação que Mario Filho faz em sua primeira edição e que o Literatura na Arquibancada resgata na íntegra pouco mais abaixo: “Não, eu não usei a imaginação. Nenhum historiador teria tido mais cuidado do que eu em selecionar os dados, em comprovar-lhe a veracidade por averiguações exaustivas. Às vezes uma simples dúvida me fazia inutilizar um capítulo, obrigando-me a novos trabalhos e pesquisas”.
Em outro livro, A Invenção do País do Futebol – Mídia, Raça e Idolatria, os autores Ronaldo Helal, Antonio Jorge Soares e Hugo Lovisolo entendem que “o livro pioneiro de Mário se equivoca justamente no enfoque sociológico, ao afirmar que o negro teria sido o criador da ginga, do drible, do estilo brasileiro de se jogar futebol”. No texto de apresentação da mais recente edição de O Negro no Futebol Brasileiro (Mauad), os autores vão mais longe: “Para eles, a utilização de O Negro no Futebol Brasileiro por sociólogos criou uma espécie de interpretação única, com os ideais da construção de uma nação brasileira com menos antagonismos entre as raças. De acordo com os pesquisadores, o equívoco não seria de Mário, mas da forma com que especialistas acabaram franqueando a tese do autor, como a construção do ídolo negro — que seria mais uma criação romântica que deu certo. Para os autores, o racismo preexistiu, mas o nosso futebol se fez mais pela pressão do profissionalismo, pela criação das ligas, do que propriamente por racismo. Jorge salienta que Mário Filho buscou constituir uma identidade nacional, cujo enfoque tem influência do meio em que viveu”.
Tantas análises sociológicas foram feitas sobre a obra de Mario Filho porque quem assinou o prefácio do livro foi nada menos do que Gilberto Freyre, considerado um dos maiores sociólogos do país, e que você poderá ler na íntegra logo abaixo e tirar suas conclusões sobre a importância de “O Negro no Futebol Brasileiro” na literatura brasileira.
O certo é que a obra-prima de Mario Filho, considerado “o pai da crônica esportiva brasileira” permanece atual e com sugestões que nos fazem refletir. Segundo Mario Filho, o futebol brasileiro sempre revela próximo do ciclo de 20 anos um novo “rei” do futebol. Foi assim com Friedenreich e Leônidas da Silva, entre o Diamante Negro (1938) e Pelé e Garrincha (1958), entre Pelé (1970) e Romário (1994). Ou seja, em 2014, ano da Copa no Brasil, seria Neymar, o mulato que encanta o mundo com sua genialidade a suceder o baixinho Romário?

Prefácio Gilberto Freyre
Recife, 1947

Gilberto Freyre
Aqui está um capítulo da história do futebol no Brasil, que é também uma contribuição valiosa para a história da sociedade e da cultura brasileira na sua transição da fase predominantemente urbana. Além disso, as páginas mais sugestivas de Mario Filho nos põem diante do conflito entre estas duas forças imensas – a racionalidade e a irracionalidade – no comportamento ou na vida dos homens. No caso, homens do Brasil. Homens de uma sociedade híbrida, mestiça, cheia de raízes ameríndias e africanas e não apenas europeias.
Creio não dizer novidade nenhuma repetindo que por trás da instituição considerável que o futebol tornou-se em nosso país se condensam e se acumulam, há anos, velhas energias psíquicas e impulsos irracionais do homem brasileiro, em busca da sublimação. Essa sublimação estava outrora apenas na oportunidade para feitos heroicos ou ações admiráveis que o Exército, a Marinha e as Revoluções mais ou menos patrióticas abriam aos brasileiros brancos e, principalmente, mestiços ou de cor, mais transbordantes de energias animais ou de impulsos irracionais.
Dessas energias e desses impulsos, alguns eram de sentido sadista, outros masoquista. Uns exibicionistas, outros narcisistas. O que, honestamente reconhecido – pois tais elementos se encontram à raiz de algumas das mais belas expressões de bravura, de heroísmo e de valor até hoje praticadas pelos homens de qualquer cor, condição ou cultura – não importa em desconhecer-se a grandeza ou a beleza desses feitos sob a forma das sublimações que atingiram.
Isto quando essas energias ou esses impulsos, em vez de assim se sublimarem ou de se satisfazerem com os esportes ou os quase-esportes rurais dos dias de festa, ou dos dias comuns, dominantes no Brasil patriarcal – as cavalhadas, as corridas atrás de bois, as caçadas, as pessoas, as noites inteiras de samba ou de dança extenuante, as largas caminhadas pelos sertões, a caça aos índios ou aos negros fugidos, a fuga dos negros aos feitores ou à melancolia da rotina agradaria dos engenhos e fazendas – não se degradaram moral ou socialmente em proezas como as do cangaço ou nos rabos-de-arraia da capoeiragem, célebres na história da sociedade brasileira. Espécies de esportes inteiramente irracionais.

O futebol teria numa sociedade como a brasileira, em grande parte formada de elementos primitivos em sua cultura, uma importância toda especial que só agora vai sendo estudada sob critério sociológico ou para-sociológico. E era natural que tomasse aqui o caráter particularmente brasileiro que tomou. Pois tornou-se o meio de expressão, moral e socialmente aprovado pela nossa gente – pelo Governo, pela Igreja, pela Opinião Pública, pelo Belo Sexo, pela Imprensa – de energias psíquicas e de impulsos irracionais que sem o desenvolvimento do futebol – ou de algum equivalente de futebol – na verdadeira instituição nacional que é hoje, entre nós, teriam provavelmente assumido formas de expressão violentamente contrárias à moralidade dominante em nosso meio.

O cangaceirismo teria provavelmente evoluído para um como gangsterismo urbano, com São Paulo degradada numa sub-Chicago de Al Capones ítalo-brasileiros. A capoeiragem, livre de Sampaio Ferraz, teria provavelmente voltado a enfrentar a polícia das cidades sob a forma de conflitos mais sérios que os antigos entre valentes dos morros e guardas-civis das avenidas, agora asfaltadas. O samba teria se conservado tão particularmente primitivo, africano, irracional que suas modernas estilizações seriam desconhecidas, com prejuízo para a nossa cultura e para o seu vigor híbrido. A malandragem também teria se conservado inteiramente um mal ou uma inconveniência.
O desenvolvimento do futebol, não num esporte igual aos outros, mas numa verdadeira instituição brasileira, tornou possível a sublimação de vários daqueles elementos irracionais de nossa formação social e de cultura. A capoeiragem e o samba, por exemplo, estão presentes de tal forma no estilo brasileiro de jogar futebol que de um jogador um tanto álgido como Domingos, admirável em seu modo de jogar mas quase sem floreios – os floreios barrocos tão do gosto brasileiro – um crítico da argúcia de Mario Filho pode dizer que ele está para o nosso futebol como Machado de Assis para a nossa literatura, isto é, na situação de uma espécie de inglês desgarrado entre tropicais.

Domingos da Guia
Em moderna linguagem sociológica, na situação de um apolíneo entre dionisíacos. O que não quer dizer que deixe de haver alguma coisa de concentradamente brasileiro no jogo de Domingos como existe alguma coisa de concentradamente brasileiro na literatura de Machado. Apenas há num e noutro um domínio sobre si mesmos que só os clássicos – que são, por definição, apolíneos – possuem de modo absoluto ou quase absoluto, em contraste com os românticos mais livremente criadores.
Mas vá alguém estudar o fundo de Domingos ou a literatura de Machado que encontrará decerto nas raízes de cada um, dando-lhes autenticidade brasileira, um pouco de samba, um pouco de molecagem baiana e até um pouco de capoeiragem pernambucana ou malandragem carioca. Com esses resíduos é que o futebol brasileiro afastou-se do bem ordenado original britânico para tornar-se a dança cheia de surpresas irracionais e de variações dionisíacas que é. A dança dançada baianamente por um Leônidas; e por um Domingos, com uma impassibilidade que talvez acuse sugestões ou influências ameríndias sobre sua personalidade ou sua formação. Mas, de qualquer forma, dança.
Sublimando tanto do que é mais primitivo, mais jovem, mais elementar, em nossa cultura, era natural que o futebol, no Brasil, ao engrandecer-se em instituição nacional, engrandecesse também o negro, o descendente de negro, o mulato, o cafuso, o mestiço. E entre os meios mais recentes – isto é, dos últimos vinte ou trinta anos – de ascensão social do negro ou do mulato ou do cafuso no Brasil, nenhum excede, em importância, ao futebol.

Mario Filho
Este aspecto do desenvolvimento do futebol no Brasil, fixa-o Mário Filho com uma penetração, com uma objetividade, uma segurança, uma minúcia, um luxo de pormenores significativos, que tornam seu ensaio obra de importância para o estudo sociológico e psicológico da ascensão do negro e do mulato na sociedade brasileira. O cronista esportivo, já tão admirado pelo poder de evocação com que tem revivido não só jogos dramáticos – o dos brasileiros com os uruguaios, por exemplo – como o começo dos esportes no Rio de Janeiro, apresenta-se, neste seu novo trabalho, mais próximo do que nunca daquela sociologia dos esportes para a qual sou dos que desejariam ver Mario Filho se encaminhar cada vez mais, através de estudos mais demorados e mais profundos do assunto.
Escritor ágil e plástico, Mario Filho é também pesquisador inteligente e pachorrento para quem a história do futebol em nosso país parece já não ter mistério nenhum. Nem a história nem a atualidade. Daí, o interesse das páginas em que reuniu suas observações e seus estudos sobre o negro no futebol.
É este livro de Mario Filho um dos mais originais e mais sugestivos escritos ultimamente por brasileiros.
Ultimamente ou, talvez, em qualquer época.
Eu que já quase não me espanto com o vigor e a originalidade de talento de qualquer dos dois Rodrigues, filhos do velho Mario e irmãos de Roberto – o pintor admirável que um tiro de mulher matou tão jovem – li as páginas a que junto agora este prefácio inútil, com verdadeiro encanto, tantas foram as sugestões fortes e novas com que me surpreenderam.



Texto de apresentação de Mario Filho (1ª edição, 1947)

O Negro no Futebol Brasileiro não me custou, evidentemente, apenas os cinco meses que levei para escrevê-lo. Desde 42, quando iniciei em O Globo uma coluna diária, a que dei o nome Da Primeira Fila, eu me preparava, sem o saber, é claro, para o trabalho que aqui está pronto, em volume. Foi o que me permitiu realizá-lo. Pude estudar, separadamente, várias épocas do futebol brasileiro, ou, melhor, do futebol carioca, cuja história não há de diferir, em essência, de nenhuma outra dos grandes centros esportivos do Brasil. Eis o que me valeu o conhecimento de fontes que, de outra forma, permaneceriam ignoradas. Cada Primeira Fila, revivendo um passado quase morto mesmo na memória dos que o viveram, me colocava diante de personagens de uma história que precisava ser escrita antes de perder-se, irremediavelmente.
O futebol, hoje, enche páginas da imprensa mais austera, menos esportiva. Nem sempre, porém, foi assim. Basta percorrer as coleções dos jornais e das revistas de trinta, de quarenta anos atrás. O futebol só interessou às folhas depois de se tornar uma paixão do povo. Enquanto não encheu os campos, não dividiu a cidade em grupos, em verdadeiros clans, o futebol quase não existia para os jornais. Por isso a consulta de jornais até 10 pode servir, quando muito, para estatísticas de resultados de jogos. Somente depois de 10 é que o futebol, transformado em assunto jornalístico, permitiu que apaixonados do chamado esporte bretão cada um com o seu clube, escrevessem crônicas, às vezes assinadas com iniciais.
Marcos de Mendonça
Marcos de Mendonça teve a gentileza de emprestar-me o seu álbum, o mais completo repositório dos acontecimentos do futebol de 10 a 19. Com fotografias preciosas, com recortes de jornais, às vezes dez recortes de jornais diferentes sobre um mesmo jogo, o álbum de Marcos de Mendonça me serviu de muito, principalmente para acompanhar o que eu chamaria a história da importância do futebol. Importância que se sentia crescer com os recortes, com as fotografias. A estreia de Marcos de Mendonça, em 10, num jogo Hadock Lobo e Fluminense, um quarto de coluna. Em menos de três anos os jornais já davam uma página para um simples jogo. E, depois, o álbum me fornecia nomes, me apresentava a uma porção de gente que eu podia consultar.
Essas conversas com os próprios personagens da história do futebol brasileiro é que iam enriquecer o meu ensaio. Personagens que viviam, que deviam se lembrar do que tinha acontecido naqueles tempos. Procurei-os, um por um, nenhum deles se negou a me prestar informações, pelo contrário, todos se prontificaram a colaborar comigo.
Guilherme Pastor, que preparava um histórico do Bangu que viu nascer; Flávio Ramos, fundador do Botafogo; Emmanuel Sodré, também fundador do Botafogo, que acompanhou de perto a vida do Carioca, o clube dos garotos do Largo dos Leões, os mesmos garotos que se tornaram os campeões de 10; Norman Hime, dos primeiros dias do Botafogo; Afonso de Castro, o arquivo do Fluminense; Alfredo Koeller, fundador do América; Luqs de Mendonça, fundador do Catete, do Hadock Lobo, companheiro de Belfort Duarte, um dos que mais trabalharam para a fusão do América e Hadock Lobo, que deu, ao América, o seu campo; Gastão Cruls, que pegou o tempo em que o futebol era o recreio obrigatório no Colégio São Vicente de Paulo. Gabriel de Carvalho, que levou um bofetão de Abelardo Delamare, bofetão que cindiu a Liga Metropolitana; Marcos de Mendonça, símbolo de uma época do futebol carioca;
Alberto Borghert, do Rio, do Fluminense, líder do movimento que trouxe o Flamengo para o futebol; Joaquim Guimarães, torcedor de fitinha no chapéu do Fluminense, do Flamengo, que namorava numa varandinha de Voluntários da Pátria e enquanto namorava via o Botafogo treinar todas as tardes; Diocesano Ferreira Gomes, o Dãodo Correio da Manhã, “mosca”, como se dizia, da garage do Flamengo; Mário Polo, do Fluminense, de ontem e de hoje, um dos primeiros cronistas a receber ordenado de um jornal para escrever sobre futebol; Harry Welfare, o “Yankee na Corte do Rei Arthur”, verdadeira missão de futebol inglês no Brasil; Pedro da Cunha, torcedor desde aquele tempo, que não perdia um jogo; Hugo Fracarolli, da Associação Atlética das Palmeiras de 15, clube que fazia questão de ser, em São Paulo, o que o Fluminense era no Rio: branco e fino; Paulo Canongia, o representante do Carioca que atrapalhava os jogadores dos outros clubes pequenos, os brancos pobres, os mulatos e os pretos, na hora de assinar a súmula; Orlando Bandeira Vilela, que ajudou a carregar areia para o aterro do campo do Andaraí, que viveu a vida da Praça Sete e que conheceu Monteiro de perto; José da Silva Filho, o Laúsa, cria do Andaraí; José Trocoli, cria do Bangu; Luís de Meneses, o enfant-gaté do Botafogo;
Arnaldo Guinle
Arnaldo Guinle, o patrono do Fluminense, uma espécie de Príncipe de Gales do esporte brasileiro; Max Gomes de Paiva, que ficou com o arquivo de Belfort Duarte; Agostinho Fortes Filho, o “Dadá” do Fluminense, jogador granfino que vivia fazendo molecagem em campo; Mário Reis, que se lembra de tudo que aconteceu no futebol carioca de 16 para cá, que é capaz de dar a escalação dos times, o juiz, o escore de cada jogo, sem consultar um jornal, só puxando pela memória; Paulo e João Coelho Neto, garotos quando, aos domingos, os jogadores do Fluminense se reuniam na casa de Coelho Neto; Ana Amélia, torcedora que repetia, até o dia da derrota, um vestido de uma vitória do América, primeiro, do Fluminense, depois;
Vasco da Gama de 1923, presidido por Antonio Campos.
João Santos, o presidente do América que botou Manteiga em Campos Sales, Egas de Mendonça, casado com uma Borges, as Borges exigindo que os seus namorados, noivos e maridos, saíssem de um América com um Manteiga no time; Jaime Barcelos, que dirigiu o time do América em 22, em 28; Osvaldo Melo, o “Príncipe dos Passes”, que não se envergonhou de jogar ao lado de Manteiga; Ademar Martins, o Japonês do Flamengo, campeão de 20 e 21; Jaime Guedes, dos primeiros dias do Vasco em futebol; Álvaro Nascimento, cronista vascaíno; Antônio Campos, o presidente do Vasco que quase foi a falência por causa do Vasco; Claudionor Corrêa, o Balão, campeão de 23; Pascoal, campeão de 23 e 29; Horácio Werner, que levou Pascoal para o Rio de Janeiro, mudando-lhe o nome de Pascoal Cinelle para Pascoal Silva; Vicente Caruso, que foi para o Fluminense com Nilo Murtinho Braga e pode conhecer, de perto, a vida de Álvaro Chaves em 24, ano do nascimento da AMEA, da Renascença do futebol branco;
Reis Carneiro, um dos mais ativos membros da Comissão de Sindicância da AMEA; Oscar da Costa, o presidente da Confederação Brasileira de Desportos que fez questão de mandar para Buenos Aires um escrete de smocking; Luís Vinhais, que conduziu o time do São Cristóvão à conquista do campeonato de 26; Castelo Branco, toda a vida diretor da Confederação; Antônio Avelar, tantas vezes presidente do América; Fábio Horta, que recebia bilhetes de Floriano, o Marechal da Vitória, escritos nas costas de uma imagem, pedindo de dinheiro; José Pereira Peixoto, jogador do Vasco, que livrou Welfare de uma punhalada de Jaguaré; Togo Renan Soares, que foi o treinador do Bangu no tempo do Coronel Pedroso, quando Domingos começava a chamar a atenção;


Leônidas da Silva, o Diamante Negro.
Sílvio Pacheco, que deu um soco em Leônidas em 32 e se recusou a jogar com Leônidas num escrete; Oscarino, o “Pai de Santo” da “Copa Rio Branco” de 32; Ivan Mariz, o único dos amadores do Fluminense que não hesitou em assinar seu contrato de jogador profissional de futebol; Bastos Padilha, o presidente do Flamengo que levou os maiores pretos do futebol brasileiro para a Gávea; Rivadávia Correa Meyer, antigo jogador do Botafogo, presidente da AMEA no ano da cisão, hoje presidente da Confederação Brasileira de Desportos; Gustavo de Carvalho, o presidente do Flamengo que brigou com Leônidas; João Lira Filho, presidente do Conselho Nacional de Desportos, que quis fazer as pazes entre Gustavo de Carvalho e Leônidas; Roberto Pedrosa, que veio buscar Leônidas para o São Paulo; Domingos, Leônidas Valdemar, que me contaram a sua vida; José Scassa, jornalista que foi, logo depois do Campeonato do Mundo, secretário de Leônidas;
Leite de Castro, chefe do Departamento de Assistência Social da Federação Metropolitana; José de Almeida, chefe do Departamento Técnico do Fluminense, que me fez partilhar das riquezas do maior arquivo do esporte brasileiro; e não sei quantos mais dirigentes, jogadores, torcedores. Cada um deles me ajudando um pouco, mais do que os jornais, do que os livros de atas das entidades, de correspondência dos clubes, de súmulas dos jogos, de registro dos jogadores. Os documentos oficiais me mostraram que a história verdadeira se escreve de outro jeito. Quem manuseasse, como duas vezes, de 6 a 23, os livros da AMEA de 24 a 32, colocada à minha disposição pelo presidente da Confederação Brasileira de Desportos, Rivadávia Correa Meyer, além dos relatórios da própria Confederação, não descobriria, em parte alguma, nada da luta do negro, se não entrasse na intimidade dos fatos. As atas, a correspondência dos clubes, não faltam dos negros. As leis das entidades não tocam, nem de leve, em questões de raça. Limitando-se a levantar barreiras sociais, proibindo que trabalhadores braçais, empregados subalternos, contínuos, garçons, barbeiros, praças de pré e por aí afora, jogassem futebol em clubes filiados.
Eu fui, aos poucos, levantando o véu, ouvindo daqui, dali, reconstituindo a tradição oral, muito mais rica, muito mais viva do que a escrita dos documentos oficiais, graves circunspectos, dos jornais que não dizem tudo. Hoje já dizem muita coisa, mas não diziam quase nada. A imprensa mais mexeriqueira, querendo entrar na vida do jogador para satisfazer a curiosidade do público cada vez maior do futebol é coisa de menos de vinte anos. E essa imprensa eu tinha à mão. A coleção completa daVida Esportiva, uma revista que nasceu em 16 e morreu em 20; a da Crítica, de 28 a 30; a do O Globo; a do Jornal dos Sports, a do Globo Esportivo. Eu preferia, porém, ouvir dirigentes, jogadores e torcedores. Ouvi centenas deles, de todas as épocas do futebol brasileiro. Quando podia ouvir do próprio não procurava outro.
Reuni, assim, um material de tal ordem que surpreendeu alguém cuja opinião prezo muito. O material era tanto, e com tamanho requinte de detalhe, que ficava a dúvida. A dúvida de como eu conseguiria reuni-lo, catalogá-lo, usá-lo, numa narrativa corrente, sem um claro, uma interrupção. Eu não me teria valido da imaginação de romancista que ainda não publicou um romance? Não, eu não usei a imaginação. Nenhum historiador teria tido mais cuidado do que eu em selecionar os dados, em comprovar-lhe a veracidade por averiguações exaustivas. Às vezes uma simples dúvida me fazia inutilizar um capítulo, obrigando-me a novos trabalhos e pesquisas.
Uma vaidade eu tenho: a de apresentar uma obra que desafia contestação. Se eu tivesse exagerado, para não dizer deturpado os fatos, não faltariam desmentidos. Antes de sair em livro, O Negro no Futebol Brasileiro teve a mais ampla divulgação jornalística que se poderia desejar, pois foi publicado diariamente, durante cinco meses, no O Globo, o jornal de maior circulação da imprensa brasileira. E não apareceu uma refutação de quem quer que fosse, embora quase todos os personagens da história do futebol brasileiro estejam vivos, tenham lido as páginas reunidas neste volume. O que prova que o que está aqui é a verdade pura e simples.

Texto apresentação de Mario Filho (2ª edição, publicada 17 anos depois, em 1964)
Mario Filho



Gol do Uruguai, na Copa de 1950.
O Negro no Futebol Brasileiro, cuja primeira edição estava esgotada há anos, era um ensaio que, embora insinuasse mais do que concluísse e procurasse, sobretudo, fixar o processo, de uma certa forma penoso e longo, da democratização do futebol brasileiro, enfrentava uma prova a que poucos livros se submetem em vida. Basta lembrar que a derrota do Brasil em 50, no campeonato mundial de futebol, provocou um recrudescimento do racismo. Culpou-se o preto pelo desastre de 16 de julho. Assim, aparentemente, O Negro no Futebol Brasileiro, por uma análise superficial, teria aceito uma visão otimista a respeito de uma integração racial que não se realizara ainda no futebol, sem dúvida o campo mais vasto que se abrira para a ascensão social do preto.
A prova estaria naqueles bodes expiatórios, escolhidos a dedo, e por coincidência todos pretos: Barbosa, Juvenal e Bigode. Os brancos do escrete brasileiro não foram acusados de nada. É verdade que o brasileiro se chamou, macerando-se naquele momento, de sub-raça. Éramos uma raça de mestiços, uma sub-raça incapaz de aguentar o rojão. Mas o brasileiro, inconscientemente, idealizou um ídolo à imagem e semelhança de Obdúlio Varela, El Gran Capitan, por sinal um mulato uruguaio. Se o Brasil se tornasse campeão do mundo, como todos esperávamos em 50, o ídolo nacional seria, naturalmente como sempre fora, um mulato ou um preto.
O primeiro se chamara Artur Friedenreich, filho de pai alemão e mãe preta. Um mulato de olhos verdes. O segundo, Leônidas da Silva, filho de pai português e mãe preta. Um mulato mais para preto, de nariz arrebitado.
Quando o Brasil levantou o campeonato mundial da Suécia, em 58, o brasileiro elegeu dois ídolos: o preto Pelé e o mulato Garrincha. O Negro no Futebol Brasileiro suportara a prova sem ter de mudar uma linha. O curioso é que quase o mesmo espaço de tempo separara a escolha de um ídolo nacional do futebol brasileiro: dezenove anos entre Friedenreich e Leônidas e vinte entre Leônidas e Pelé e Garrincha.
Há de parecer estranho que sem ter de modificar nada que escrevi, conservando intactas as quatro partes da primeira edição do O Negro no Futebol Brasileiro, a segunda edição surja aumentada e tenha a pretensão de definitiva. Pouca gente se dá conta do que se exige de um jogador de futebol. Ele tem de representar um clube, uma cidade, um Estado, a Pátria. O que se espera dele é que encarne as melhores virtudes do homem, no caso do brasileiro, as melhores virtudes do homem brasileiro.
Quando o brasileiro acusou Barbosa, Juvenal e Bigode, acusou-se a si mesmo. O futebol não seria paixão do povo se o povo não se identificasse com um time, o seu time, com uma bandeira e uma camisa. Quem torce em futebol está ligado, irremediavelmente, ao seu time, para o bem ou para o mal, para a felicidade ou para a desgraça.
No fundo o torcedor quer que o jogador seja melhor do que ele. O jogador representa-o, representa o seu clube, a sua cidade, o seu Estado, a sua Pátria. A derrota do jogador é a derrota do torcedor. Quem perdeu em 50 foi o brasileiro. Mais o brasileiro que não jogou do que o que jogou.
É fácil imaginar a pressão exercida sobre o jogador, branco, mulato ou preto. Mais sobre o mulato e o preto que envolvem a mistura racial em que se caldeia o brasileiro. O futebol desencadeia uma luta entre clubes, que é o seu cotidiano. A tal ponto que se chamou a essa luta de guerra. O jogador era o soldado, a carne do canhão, embora alguns fossem generais, deuses das batalhas. Muito jogador não resistiu a essa tensão permanente, verdadeiro stress.
É um capítulo acrescentado a O Negro no Futebol Brasileiro que lhe dá nova dimensão. O outro diz respeito ao embranquecimento do preto nos clubes que defendem. Um preto do Fluminense não é preto para o Fluminense. É tratado como branco. Pode esquecer-se da cor e dizer como Robson:
– Eu já fui preto e sei o que é isso.
Realmente os pretos do futebol procuraram, à medida que ascendiam, ser menos pretos. Esquecendo-se de não se lembrar mesmo em alguns casos, que eram pretos. Mandando esticar os cabelos, fazendo operações plásticas, fugindo da cor.
Daí a importância de Pelé, o Rei do Futebol, que faz questão de ser preto. Não para afrontar ninguém, para exaltar a mãe, o pai, a avó, o tio, a família pobre de pretos que o preparou para a glória. Nenhum preto, no mundo, tem contribuído mais para varrer barreiras raciais do que Pelé. Tornou-se o maior ídolo do esporte mais popular da Terra. Quem bate palmas para ele bate palmas para um preto. Por isso Pelé não mandou esticar os cabelos: é preto como o pai, como a mãe, como a avó, como o tio, como os irmãos. Para exaltá-los, exalta o preto.
Por isso é mais do que um preto: é o Preto. Os outros pretos do futebol brasileiro reconhecem-no: para eles Pelé é o Crioulo.
Estou certo de que O Negro no Futebol Brasileiro se enriqueceu com o que agora lhe foi acrescentado e que, por pertencer-lhe de direito, completa-o, dando-lhe forma definitiva.

Sobre Mario Filho (texto de Mário Neto, extraído do livro O negro no futebol brasileiro, Ed. Mauad, 2003):

Nasceu no dia 3 de junho de 1908 em Recife, Pernambuco. Terceiro dos catorze filhos (Milton, Roberto, Mario, Stella, Nelson, Jofre, Maria Clara, Augusto, Irene, Paulo, Helena, Dora, Elza e Dulce) de Mario Rodrigues e Maria Esther, chegou no Rio de Janeiro em 1916. Começou a trabalhar aos 17 anos (casou-se aos 18 com Célia) no jornal A Manhã e depois, de 1928 a 1930, em A Crítica, ambos de seu pai, e em 1931, a convite de Roberto Marinho, foi chefiar a parte de esportes do jornal O Globo. Foi o primeiro jornalista a dar destaque, ainda na Crítica, à parte humana do futebol, além de grandes espaços até então jamais pensados pelos donos de jornais. Sua matéria sobre a volta do goleiro Marco de Mendonça foi um marco no esporte. A partir daí as notícias sobre futebol começaram a proliferar-se e os jogadores passaram a ser olhados de outra maneira. Em 1931 fundou o primeiro jornal inteiramente esportivo no Rio de Janeiro, O Mundo Esportivo.
Curiosamente, foi nesse jornal que Mario Filho idealizou e realizou o primeiro desfile das escolas de samba, na praça Onze. Em 1936, comprou o Jornal dos Sports, onde não deixou de ir um dia que seja, até sua morte, no dia 17 de setembro de 1966. No Jornal dos Sports criou os Jogos da Primavera em 1947, os Jogos Infantis em 1951, o Torneio de Pelada no Aterro do Flamengo e o Torneio Rio-São Paulo, que se juntaram às suas outras criações, como à mística do nome FlaxFlu e também a Manchete Esportiva.
Liderou, com crônicas diárias, a campanha para que o Maracanã, que hoje tem o seu nome, fosse construído no lugar atual para a Copa do Mundo de 1950. O então vereador Carlos Lacerda defendia a tese de que o estádio fosse construído em Jacarepaguá e no máximo para 60 mil espectadores e não como queria Mario, para mais de 150 mil torcedores. Mario Filho deixou várias obras literárias: Bonecas (1927), Copa Rio Branco (1932), Histórias do Flamengo (1934), O Negro no Futebol Brasileiro (1947), Romance do Football (1949), Senhorita (1950), Copa do Mundo de 62 (1962), Viagem em torno de Pelé (1964), O Rosto (1965) e Infância de Portinari (1966). Como disse seu irmão Nelson Rodrigues, Mario foi tão grande que deveria ter sido enterrado no Maracanã.

Fonte: http://www.literaturanaarquibancada.com/2012/05/o-negro-no-futebol-brasileiro.html

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