Ainda não surgiu na literatura esportiva outra obra que tenha sido tão
estudada e pesquisada como “
O Negro no Futebol
Brasileiro”, de Mario Filho. Sessenta e cinco anos após a sua
primeira edição em 1947 (Pongetti Editores) ela já foi tema de centenas de
análises acadêmicas feitas por gente do mais alto calibre de diversas áreas e
estudos da sociedade e do futebol brasileiro. Teve quatro edições, a segunda em
1964, pela Editora Civilização Brasileira, a terceira em 1994, pela Editora
Firmo, e, finalmente, em 2003, pela Mauad Editora.
O Negro no Futebol Brasileiro é considerado o maior clássico da literatura
esportiva brasileira, mas nem por isso deixou de ser questionada por vários
estudiosos. Para muitos, Mario Filho, a semelhança de seu irmão Nelson
Rodrigues, teria inventado muitas das histórias narradas no livro. A resposta do
próprio autor a esses críticos pode ser encontrada no texto de apresentação que
Mario Filho faz em sua primeira edição e que o Literatura na Arquibancada
resgata na íntegra pouco mais abaixo: “Não, eu não usei a imaginação. Nenhum
historiador teria tido mais cuidado do que eu em selecionar os dados, em
comprovar-lhe a veracidade por averiguações exaustivas. Às vezes uma simples
dúvida me fazia inutilizar um capítulo, obrigando-me a novos trabalhos e
pesquisas”.
Em outro livro,
A Invenção do País do
Futebol – Mídia, Raça e Idolatria, os autores Ronaldo Helal,
Antonio Jorge Soares e Hugo Lovisolo entendem que “
o livro pioneiro de Mário
se equivoca justamente no enfoque sociológico, ao afirmar que o negro teria sido
o criador da ginga, do drible, do estilo brasileiro de se jogar futebol”.
No texto de apresentação da mais recente edição de O Negro no Futebol Brasileiro
(Mauad), os autores vão mais longe: “
Para eles, a utilização de O Negro no
Futebol Brasileiro por sociólogos criou uma espécie de interpretação única, com
os ideais da construção de uma nação brasileira com menos antagonismos entre as
raças. De acordo com os pesquisadores, o equívoco não seria de Mário, mas da
forma com que especialistas acabaram franqueando a tese do autor, como a
construção do ídolo negro — que seria mais uma criação romântica que deu certo.
Para os autores, o racismo preexistiu, mas o nosso futebol se fez mais pela
pressão do profissionalismo, pela criação das ligas, do que propriamente por
racismo. Jorge salienta que Mário Filho buscou constituir uma identidade
nacional, cujo enfoque tem influência do meio em que viveu”.
Tantas análises sociológicas foram feitas sobre a obra de Mario Filho porque
quem assinou o prefácio do livro foi nada menos do que Gilberto Freyre,
considerado um dos maiores sociólogos do país, e que você poderá ler na íntegra
logo abaixo e tirar suas conclusões sobre a importância de “O Negro no Futebol
Brasileiro” na literatura brasileira.
O certo é que a obra-prima de Mario Filho, considerado “
o pai da crônica
esportiva brasileira” permanece atual e com sugestões que nos fazem
refletir. Segundo Mario Filho, o futebol brasileiro sempre revela próximo do
ciclo de 20 anos um novo “rei” do futebol. Foi assim com Friedenreich e Leônidas
da Silva, entre o Diamante Negro (1938) e Pelé e Garrincha (1958), entre Pelé
(1970) e Romário (1994). Ou seja, em 2014, ano da Copa no Brasil, seria Neymar,
o mulato que encanta o mundo com sua genialidade a suceder o baixinho
Romário?
Prefácio Gilberto Freyre
Recife, 1947
Gilberto Freyre
Aqui está um capítulo da história do futebol no Brasil, que é também uma
contribuição valiosa para a história da sociedade e da cultura brasileira na sua
transição da fase predominantemente urbana. Além disso, as páginas mais
sugestivas de Mario Filho nos põem diante do conflito entre estas duas forças
imensas – a racionalidade e a irracionalidade – no comportamento ou na vida dos
homens. No caso, homens do Brasil. Homens de uma sociedade híbrida, mestiça,
cheia de raízes ameríndias e africanas e não apenas europeias.
Creio não dizer novidade nenhuma repetindo que por trás da instituição
considerável que o futebol tornou-se em nosso país se condensam e se acumulam,
há anos, velhas energias psíquicas e impulsos irracionais do homem brasileiro,
em busca da sublimação. Essa sublimação estava outrora apenas na oportunidade
para feitos heroicos ou ações admiráveis que o Exército, a Marinha e as
Revoluções mais ou menos patrióticas abriam aos brasileiros brancos e,
principalmente, mestiços ou de cor, mais transbordantes de energias animais ou
de impulsos irracionais.
Dessas energias e desses impulsos, alguns eram de sentido sadista, outros
masoquista. Uns exibicionistas, outros narcisistas. O que, honestamente
reconhecido – pois tais elementos se encontram à raiz de algumas das mais belas
expressões de bravura, de heroísmo e de valor até hoje praticadas pelos homens
de qualquer cor, condição ou cultura – não importa em desconhecer-se a grandeza
ou a beleza desses feitos sob a forma das sublimações que atingiram.
Isto quando essas energias ou esses impulsos, em vez de assim se sublimarem
ou de se satisfazerem com os esportes ou os quase-esportes rurais dos dias de
festa, ou dos dias comuns, dominantes no Brasil patriarcal – as cavalhadas, as
corridas atrás de bois, as caçadas, as pessoas, as noites inteiras de samba ou
de dança extenuante, as largas caminhadas pelos sertões, a caça aos índios ou
aos negros fugidos, a fuga dos negros aos feitores ou à melancolia da rotina
agradaria dos engenhos e fazendas – não se degradaram moral ou socialmente em
proezas como as do cangaço ou nos rabos-de-arraia da capoeiragem, célebres na
história da sociedade brasileira. Espécies de esportes inteiramente
irracionais.
O futebol teria numa sociedade como a brasileira, em grande parte formada de
elementos primitivos em sua cultura, uma importância toda especial que só agora
vai sendo estudada sob critério sociológico ou para-sociológico. E era natural
que tomasse aqui o caráter particularmente brasileiro que tomou. Pois tornou-se
o meio de expressão, moral e socialmente aprovado pela nossa gente – pelo
Governo, pela Igreja, pela Opinião Pública, pelo Belo Sexo, pela Imprensa – de
energias psíquicas e de impulsos irracionais que sem o desenvolvimento do
futebol – ou de algum equivalente de futebol – na verdadeira instituição
nacional que é hoje, entre nós, teriam provavelmente assumido formas de
expressão violentamente contrárias à moralidade dominante em nosso meio.
O cangaceirismo teria provavelmente evoluído para um como gangsterismo
urbano, com São Paulo degradada numa sub-Chicago de Al Capones
ítalo-brasileiros. A capoeiragem, livre de Sampaio Ferraz, teria provavelmente
voltado a enfrentar a polícia das cidades sob a forma de conflitos mais sérios
que os antigos entre valentes dos morros e guardas-civis das avenidas, agora
asfaltadas. O samba teria se conservado tão particularmente primitivo, africano,
irracional que suas modernas estilizações seriam desconhecidas, com prejuízo
para a nossa cultura e para o seu vigor híbrido. A malandragem também teria se
conservado inteiramente um mal ou uma inconveniência.
O desenvolvimento do futebol, não num esporte igual aos outros, mas numa
verdadeira instituição brasileira, tornou possível a sublimação de vários
daqueles elementos irracionais de nossa formação social e de cultura. A
capoeiragem e o samba, por exemplo, estão presentes de tal forma no estilo
brasileiro de jogar futebol que de um jogador um tanto álgido como
Domingos, admirável em seu modo de jogar mas quase sem floreios – os
floreios barrocos tão do gosto brasileiro – um crítico da argúcia de Mario Filho
pode dizer que ele
está para o nosso futebol como Machado de Assis para a
nossa literatura, isto é, na situação de uma espécie de inglês desgarrado
entre tropicais.
Domingos da Guia
Em moderna linguagem sociológica, na situação de um apolíneo entre
dionisíacos. O que não quer dizer que deixe de haver alguma coisa de
concentradamente brasileiro no jogo de Domingos como existe alguma coisa de
concentradamente brasileiro na literatura de Machado. Apenas há num e noutro um
domínio sobre si mesmos que só os clássicos – que são, por definição, apolíneos
– possuem de modo absoluto ou quase absoluto, em contraste com os românticos
mais livremente criadores.
Mas vá alguém estudar o fundo de Domingos ou a literatura de Machado que
encontrará decerto nas raízes de cada um, dando-lhes autenticidade brasileira,
um pouco de samba, um pouco de molecagem baiana e até um pouco de capoeiragem
pernambucana ou malandragem carioca. Com esses resíduos é que o futebol
brasileiro afastou-se do bem ordenado original britânico para tornar-se a dança
cheia de surpresas irracionais e de variações dionisíacas que é. A dança dançada
baianamente por um Leônidas; e por um Domingos, com uma impassibilidade que
talvez acuse sugestões ou influências ameríndias sobre sua personalidade ou sua
formação. Mas, de qualquer forma, dança.
Sublimando tanto do que é mais primitivo, mais jovem, mais elementar, em
nossa cultura, era natural que o futebol, no Brasil, ao engrandecer-se em
instituição nacional, engrandecesse também o negro, o descendente de negro, o
mulato, o cafuso, o mestiço. E entre os meios mais recentes – isto é, dos
últimos vinte ou trinta anos – de ascensão social do negro ou do mulato ou do
cafuso no Brasil, nenhum excede, em importância, ao futebol.
Mario Filho
Este aspecto do desenvolvimento do futebol no Brasil, fixa-o Mário Filho com
uma penetração, com uma objetividade, uma segurança, uma minúcia, um luxo de
pormenores significativos, que tornam seu ensaio obra de importância para o
estudo sociológico e psicológico da ascensão do negro e do mulato na sociedade
brasileira. O cronista esportivo, já tão admirado pelo poder de evocação com que
tem revivido não só jogos dramáticos – o dos brasileiros com os uruguaios, por
exemplo – como o começo dos esportes no Rio de Janeiro, apresenta-se, neste seu
novo trabalho, mais próximo do que nunca daquela sociologia dos esportes para a
qual sou dos que desejariam ver Mario Filho se encaminhar cada vez mais, através
de estudos mais demorados e mais profundos do assunto.
Escritor ágil e plástico, Mario Filho é também pesquisador inteligente e
pachorrento para quem a história do futebol em nosso país parece já não ter
mistério nenhum. Nem a história nem a atualidade. Daí, o interesse das páginas
em que reuniu suas observações e seus estudos sobre o negro no futebol.
É este livro de Mario Filho um dos mais originais e mais sugestivos escritos
ultimamente por brasileiros.
Ultimamente ou, talvez, em qualquer época.
Eu que já quase não me espanto com o vigor e a originalidade de talento de
qualquer dos dois Rodrigues, filhos do velho Mario e irmãos de Roberto – o
pintor admirável que um tiro de mulher matou tão jovem – li as páginas a que
junto agora este prefácio inútil, com verdadeiro encanto, tantas foram as
sugestões fortes e novas com que me surpreenderam.
Texto de apresentação de Mario Filho (1ª edição, 1947)
O Negro no Futebol Brasileiro não me custou, evidentemente, apenas os cinco
meses que levei para escrevê-lo. Desde 42, quando iniciei em
O Globo uma
coluna diária, a que dei o nome
Da Primeira Fila, eu me preparava, sem o
saber, é claro, para o trabalho que aqui está pronto, em volume. Foi o que me
permitiu realizá-lo. Pude estudar, separadamente, várias épocas do futebol
brasileiro, ou, melhor, do futebol carioca, cuja história não há de diferir, em
essência, de nenhuma outra dos grandes centros esportivos do Brasil. Eis o que
me valeu o conhecimento de fontes que, de outra forma, permaneceriam ignoradas.
Cada
Primeira Fila, revivendo um passado quase morto mesmo na memória dos
que o viveram, me colocava diante de personagens de uma história que precisava
ser escrita antes de perder-se, irremediavelmente.
O futebol, hoje, enche páginas da imprensa mais austera, menos esportiva. Nem
sempre, porém, foi assim. Basta percorrer as coleções dos jornais e das revistas
de trinta, de quarenta anos atrás. O futebol só interessou às folhas depois de
se tornar uma paixão do povo. Enquanto não encheu os campos, não dividiu a
cidade em grupos, em verdadeiros
clans, o futebol quase não existia para
os jornais. Por isso a consulta de jornais até 10 pode servir, quando muito,
para estatísticas de resultados de jogos. Somente depois de 10 é que o futebol,
transformado em assunto jornalístico, permitiu que apaixonados do chamado
esporte bretão cada um com o seu clube, escrevessem crônicas, às vezes assinadas
com iniciais.
Marcos de Mendonça
Marcos de Mendonça teve a gentileza de emprestar-me o seu álbum, o mais
completo repositório dos acontecimentos do futebol de 10 a 19. Com fotografias
preciosas, com recortes de jornais, às vezes dez recortes de jornais diferentes
sobre um mesmo jogo, o álbum de Marcos de Mendonça me serviu de muito,
principalmente para acompanhar o que eu chamaria a história da importância do
futebol. Importância que se sentia crescer com os recortes, com as fotografias.
A estreia de Marcos de Mendonça, em 10, num jogo Hadock Lobo e Fluminense, um
quarto de coluna. Em menos de três anos os jornais já davam uma página para um
simples jogo. E, depois, o álbum me fornecia nomes, me apresentava a uma porção
de gente que eu podia consultar.
Essas conversas com os próprios personagens da história do futebol brasileiro
é que iam enriquecer o meu ensaio. Personagens que viviam, que deviam se lembrar
do que tinha acontecido naqueles tempos. Procurei-os, um por um, nenhum deles se
negou a me prestar informações, pelo contrário, todos se prontificaram a
colaborar comigo.
Guilherme Pastor, que preparava um histórico do Bangu que viu nascer; Flávio
Ramos, fundador do Botafogo; Emmanuel Sodré, também fundador do Botafogo, que
acompanhou de perto a vida do Carioca, o clube dos garotos do Largo dos Leões,
os mesmos garotos que se tornaram os campeões de 10; Norman Hime, dos primeiros
dias do Botafogo; Afonso de Castro, o arquivo do Fluminense; Alfredo Koeller,
fundador do América; Luqs de Mendonça, fundador do Catete, do Hadock Lobo,
companheiro de Belfort Duarte, um dos que mais trabalharam para a fusão do
América e Hadock Lobo, que deu, ao América, o seu campo; Gastão Cruls, que pegou
o tempo em que o futebol era o recreio obrigatório no Colégio São Vicente de
Paulo. Gabriel de Carvalho, que levou um bofetão de Abelardo Delamare, bofetão
que cindiu a Liga Metropolitana; Marcos de Mendonça, símbolo de uma época do
futebol carioca;
Alberto Borghert, do Rio, do Fluminense, líder do movimento que trouxe o
Flamengo para o futebol; Joaquim Guimarães, torcedor de fitinha no chapéu do
Fluminense, do Flamengo, que namorava numa varandinha de Voluntários da Pátria e
enquanto namorava via o Botafogo treinar todas as tardes; Diocesano Ferreira
Gomes, o
Dãodo
Correio da Manhã, “mosca”, como se dizia, da garage do Flamengo;
Mário Polo, do Fluminense, de ontem e de hoje, um dos primeiros cronistas a
receber ordenado de um jornal para escrever sobre futebol; Harry Welfare, o
“Yankee na Corte do Rei Arthur”, verdadeira missão de futebol inglês no Brasil;
Pedro da Cunha, torcedor desde aquele tempo, que não perdia um jogo; Hugo
Fracarolli, da Associação Atlética das Palmeiras de 15, clube que fazia questão
de ser, em São Paulo, o que o Fluminense era no Rio: branco e fino; Paulo
Canongia, o representante do Carioca que atrapalhava os jogadores dos outros
clubes pequenos, os brancos pobres, os mulatos e os pretos, na hora de assinar a
súmula; Orlando Bandeira Vilela, que ajudou a carregar areia para o aterro do
campo do Andaraí, que viveu a vida da Praça Sete e que conheceu Monteiro de
perto; José da Silva Filho, o Laúsa, cria do Andaraí; José Trocoli, cria do
Bangu; Luís de Meneses, o
enfant-gaté do Botafogo;
Arnaldo Guinle
Arnaldo Guinle, o patrono do Fluminense, uma espécie de Príncipe de Gales do
esporte brasileiro; Max Gomes de Paiva, que ficou com o arquivo de Belfort
Duarte; Agostinho Fortes Filho, o “Dadá” do Fluminense, jogador granfino que
vivia fazendo molecagem em campo; Mário Reis, que se lembra de tudo que
aconteceu no futebol carioca de 16 para cá, que é capaz de dar a escalação dos
times, o juiz, o escore de cada jogo, sem consultar um jornal, só puxando pela
memória; Paulo e João Coelho Neto, garotos quando, aos domingos, os jogadores do
Fluminense se reuniam na casa de Coelho Neto; Ana Amélia, torcedora que repetia,
até o dia da derrota, um vestido de uma vitória do América, primeiro, do
Fluminense, depois;
Vasco da Gama de 1923, presidido por Antonio Campos.
João Santos, o presidente do América que botou Manteiga em Campos Sales, Egas
de Mendonça, casado com uma Borges, as Borges exigindo que os seus namorados,
noivos e maridos, saíssem de um América com um Manteiga no time; Jaime Barcelos,
que dirigiu o time do América em 22, em 28; Osvaldo Melo, o “Príncipe dos
Passes”, que não se envergonhou de jogar ao lado de Manteiga; Ademar Martins, o
Japonês do Flamengo, campeão de 20 e 21; Jaime Guedes, dos primeiros dias do
Vasco em futebol; Álvaro Nascimento, cronista vascaíno; Antônio Campos, o
presidente do Vasco que quase foi a falência por causa do Vasco; Claudionor
Corrêa, o Balão, campeão de 23; Pascoal, campeão de 23 e 29; Horácio Werner, que
levou Pascoal para o Rio de Janeiro, mudando-lhe o nome de Pascoal Cinelle para
Pascoal Silva; Vicente Caruso, que foi para o Fluminense com Nilo Murtinho Braga
e pode conhecer, de perto, a vida de Álvaro Chaves em 24, ano do nascimento da
AMEA, da Renascença do futebol branco;
Reis Carneiro, um dos mais ativos membros da Comissão de Sindicância da AMEA;
Oscar da Costa, o presidente da Confederação Brasileira de Desportos que fez
questão de mandar para Buenos Aires um escrete de
smocking; Luís Vinhais,
que conduziu o time do São Cristóvão à conquista do campeonato de 26; Castelo
Branco, toda a vida diretor da Confederação; Antônio Avelar, tantas vezes
presidente do América; Fábio Horta, que recebia bilhetes de Floriano, o Marechal
da Vitória, escritos nas costas de uma imagem, pedindo de dinheiro; José Pereira
Peixoto, jogador do Vasco, que livrou Welfare de uma punhalada de Jaguaré; Togo
Renan Soares, que foi o treinador do Bangu no tempo do Coronel Pedroso, quando
Domingos começava a chamar a atenção;
Leônidas da Silva, o Diamante Negro.
Sílvio Pacheco, que deu um soco em Leônidas em 32 e se recusou a jogar com
Leônidas num escrete; Oscarino, o “Pai de Santo” da “Copa Rio Branco” de 32;
Ivan Mariz, o único dos amadores do Fluminense que não hesitou em assinar seu
contrato de jogador profissional de futebol; Bastos Padilha, o presidente do
Flamengo que levou os maiores pretos do futebol brasileiro para a Gávea;
Rivadávia Correa Meyer, antigo jogador do Botafogo, presidente da AMEA no ano da
cisão, hoje presidente da Confederação Brasileira de Desportos; Gustavo de
Carvalho, o presidente do Flamengo que brigou com Leônidas; João Lira Filho,
presidente do Conselho Nacional de Desportos, que quis fazer as pazes entre
Gustavo de Carvalho e Leônidas; Roberto Pedrosa, que veio buscar Leônidas para o
São Paulo; Domingos, Leônidas Valdemar, que me contaram a sua vida; José Scassa,
jornalista que foi, logo depois do Campeonato do Mundo, secretário de
Leônidas;
Leite de Castro, chefe do Departamento de Assistência Social da Federação
Metropolitana; José de Almeida, chefe do Departamento Técnico do Fluminense, que
me fez partilhar das riquezas do maior arquivo do esporte brasileiro; e não sei
quantos mais dirigentes, jogadores, torcedores. Cada um deles me ajudando um
pouco, mais do que os jornais, do que os livros de atas das entidades, de
correspondência dos clubes, de súmulas dos jogos, de registro dos jogadores. Os
documentos oficiais me mostraram que a história verdadeira se escreve de outro
jeito. Quem manuseasse, como duas vezes, de 6 a 23, os livros da AMEA de 24 a
32, colocada à minha disposição pelo presidente da Confederação Brasileira de
Desportos, Rivadávia Correa Meyer, além dos relatórios da própria Confederação,
não descobriria, em parte alguma, nada da luta do negro, se não entrasse na
intimidade dos fatos. As atas, a correspondência dos clubes, não faltam dos
negros. As leis das entidades não tocam, nem de leve, em questões de raça.
Limitando-se a levantar barreiras sociais, proibindo que trabalhadores braçais,
empregados subalternos, contínuos, garçons, barbeiros, praças de pré e por aí
afora, jogassem futebol em clubes filiados.
Eu fui, aos poucos, levantando o véu, ouvindo daqui, dali, reconstituindo a
tradição oral, muito mais rica, muito mais viva do que a escrita dos documentos
oficiais, graves circunspectos, dos jornais que não dizem tudo. Hoje já dizem
muita coisa, mas não diziam quase nada. A imprensa mais mexeriqueira, querendo
entrar na vida do jogador para satisfazer a curiosidade do público cada vez
maior do futebol é coisa de menos de vinte anos. E essa imprensa eu tinha à mão.
A coleção completa da
Vida Esportiva, uma revista que nasceu em 16 e
morreu em 20; a da Crítica, de 28 a 30; a do O Globo; a do Jornal dos Sports, a
do Globo Esportivo. Eu preferia, porém, ouvir dirigentes, jogadores e
torcedores. Ouvi centenas deles, de todas as épocas do futebol brasileiro.
Quando podia ouvir do próprio não procurava outro.
Reuni, assim, um material de tal ordem que surpreendeu alguém cuja opinião
prezo muito. O material era tanto, e com tamanho requinte de detalhe, que ficava
a dúvida. A dúvida de como eu conseguiria reuni-lo, catalogá-lo, usá-lo, numa
narrativa corrente, sem um claro, uma interrupção. Eu não me teria valido da
imaginação de romancista que ainda não publicou um romance? Não, eu não usei a
imaginação. Nenhum historiador teria tido mais cuidado do que eu em selecionar
os dados, em comprovar-lhe a veracidade por averiguações exaustivas. Às vezes
uma simples dúvida me fazia inutilizar um capítulo, obrigando-me a novos
trabalhos e pesquisas.
Uma vaidade eu tenho: a de apresentar uma obra que desafia contestação. Se eu
tivesse exagerado, para não dizer deturpado os fatos, não faltariam desmentidos.
Antes de sair em livro, O Negro no Futebol Brasileiro teve a mais ampla
divulgação jornalística que se poderia desejar, pois foi publicado diariamente,
durante cinco meses, no
O Globo, o jornal de maior circulação da imprensa
brasileira. E não apareceu uma refutação de quem quer que fosse, embora quase
todos os personagens da história do futebol brasileiro estejam vivos, tenham
lido as páginas reunidas neste volume. O que prova que o que está aqui é a
verdade pura e simples.
Texto apresentação de Mario Filho (2ª edição, publicada 17 anos depois, em
1964)
Mario Filho
Gol do Uruguai, na Copa de 1950.
O Negro no Futebol Brasileiro, cuja primeira edição estava esgotada há anos,
era um ensaio que, embora insinuasse mais do que concluísse e procurasse,
sobretudo, fixar o processo, de uma certa forma penoso e longo, da
democratização do futebol brasileiro, enfrentava uma prova a que poucos livros
se submetem em vida. Basta lembrar que a derrota do Brasil em 50, no campeonato
mundial de futebol, provocou um recrudescimento do racismo. Culpou-se o preto
pelo desastre de 16 de julho. Assim, aparentemente, O Negro no Futebol
Brasileiro, por uma análise superficial, teria aceito uma visão otimista a
respeito de uma integração racial que não se realizara ainda no futebol, sem
dúvida o campo mais vasto que se abrira para a ascensão social do preto.
A prova estaria naqueles bodes expiatórios, escolhidos a dedo, e por
coincidência todos pretos: Barbosa, Juvenal e Bigode. Os brancos do escrete
brasileiro não foram acusados de nada. É verdade que o brasileiro se chamou,
macerando-se naquele momento, de sub-raça. Éramos uma raça de mestiços, uma
sub-raça incapaz de aguentar o rojão. Mas o brasileiro, inconscientemente,
idealizou um ídolo à imagem e semelhança de Obdúlio Varela, El Gran Capitan, por
sinal um mulato uruguaio. Se o Brasil se tornasse campeão do mundo, como todos
esperávamos em 50, o ídolo nacional seria, naturalmente como sempre fora, um
mulato ou um preto.
O primeiro se chamara Artur Friedenreich, filho de pai alemão e mãe preta. Um
mulato de olhos verdes. O segundo, Leônidas da Silva, filho de pai português e
mãe preta. Um mulato mais para preto, de nariz arrebitado.
Quando o Brasil levantou o campeonato mundial da Suécia, em 58, o brasileiro
elegeu dois ídolos: o preto Pelé e o mulato Garrincha. O Negro no Futebol
Brasileiro suportara a prova sem ter de mudar uma linha. O curioso é que quase o
mesmo espaço de tempo separara a escolha de um ídolo nacional do futebol
brasileiro: dezenove anos entre Friedenreich e Leônidas e vinte entre Leônidas e
Pelé e Garrincha.
Há de parecer estranho que sem ter de modificar nada que escrevi, conservando
intactas as quatro partes da primeira edição do O Negro no Futebol Brasileiro, a
segunda edição surja aumentada e tenha a pretensão de definitiva. Pouca gente se
dá conta do que se exige de um jogador de futebol. Ele tem de representar um
clube, uma cidade, um Estado, a Pátria. O que se espera dele é que encarne as
melhores virtudes do homem, no caso do brasileiro, as melhores virtudes do homem
brasileiro.
Quando o brasileiro acusou Barbosa, Juvenal e Bigode, acusou-se a si mesmo. O
futebol não seria paixão do povo se o povo não se identificasse com um time, o
seu time, com uma bandeira e uma camisa. Quem torce em futebol está ligado,
irremediavelmente, ao seu time, para o bem ou para o mal, para a felicidade ou
para a desgraça.
No fundo o torcedor quer que o jogador seja melhor do que ele. O jogador
representa-o, representa o seu clube, a sua cidade, o seu Estado, a sua Pátria.
A derrota do jogador é a derrota do torcedor. Quem perdeu em 50 foi o
brasileiro. Mais o brasileiro que não jogou do que o que jogou.
É fácil imaginar a pressão exercida sobre o jogador, branco, mulato ou preto.
Mais sobre o mulato e o preto que envolvem a mistura racial em que se caldeia o
brasileiro. O futebol desencadeia uma luta entre clubes, que é o seu cotidiano.
A tal ponto que se chamou a essa luta de guerra. O jogador era o soldado, a
carne do canhão, embora alguns fossem generais, deuses das batalhas. Muito
jogador não resistiu a essa tensão permanente, verdadeiro stress.
É um capítulo acrescentado a O Negro no Futebol Brasileiro que lhe dá nova
dimensão. O outro diz respeito ao embranquecimento do preto nos clubes que
defendem. Um preto do Fluminense não é preto para o Fluminense. É tratado como
branco. Pode esquecer-se da cor e dizer como Robson:
– Eu já fui preto e sei o que é isso.
Realmente os pretos do futebol procuraram, à medida que ascendiam, ser menos
pretos. Esquecendo-se de não se lembrar mesmo em alguns casos, que eram pretos.
Mandando esticar os cabelos, fazendo operações plásticas, fugindo da cor.
Daí a importância de Pelé, o Rei do Futebol, que faz questão de ser preto.
Não para afrontar ninguém, para exaltar a mãe, o pai, a avó, o tio, a família
pobre de pretos que o preparou para a glória. Nenhum preto, no mundo, tem
contribuído mais para varrer barreiras raciais do que Pelé. Tornou-se o
maior ídolo do esporte mais popular da Terra. Quem bate palmas para ele bate
palmas para um preto. Por isso Pelé não mandou esticar os cabelos: é preto como
o pai, como a mãe, como a avó, como o tio, como os irmãos. Para exaltá-los,
exalta o preto.
Por isso é mais do que um preto: é o Preto. Os outros pretos do futebol
brasileiro reconhecem-no: para eles Pelé é o Crioulo.
Estou certo de que O Negro no Futebol Brasileiro se enriqueceu com o que
agora lhe foi acrescentado e que, por pertencer-lhe de direito, completa-o,
dando-lhe forma definitiva.
Sobre Mario Filho (texto de Mário Neto, extraído do livro O negro no
futebol brasileiro, Ed. Mauad, 2003):
Nasceu no dia 3 de junho de 1908 em Recife, Pernambuco. Terceiro dos catorze
filhos (Milton, Roberto, Mario, Stella, Nelson, Jofre, Maria Clara, Augusto,
Irene, Paulo, Helena, Dora, Elza e Dulce) de Mario Rodrigues e Maria Esther,
chegou no Rio de Janeiro em 1916. Começou a trabalhar aos 17 anos (casou-se aos
18 com Célia) no jornal
A Manhã e depois, de 1928 a 1930, em
A
Crítica, ambos de seu pai, e em 1931, a convite de Roberto Marinho, foi
chefiar a parte de esportes do jornal
O Globo. Foi o primeiro jornalista
a dar destaque, ainda na Crítica, à parte humana do futebol, além de grandes
espaços até então jamais pensados pelos donos de jornais. Sua matéria sobre a
volta do goleiro Marco de Mendonça foi um marco no esporte. A partir daí as
notícias sobre futebol começaram a proliferar-se e os jogadores passaram a ser
olhados de outra maneira. Em 1931 fundou o primeiro jornal inteiramente
esportivo no Rio de Janeiro,
O Mundo Esportivo.
Curiosamente, foi nesse jornal que Mario Filho idealizou e realizou o
primeiro desfile das escolas de samba, na praça Onze. Em 1936, comprou o
Jornal dos Sports, onde não deixou de ir um dia que seja, até sua morte,
no dia 17 de setembro de 1966. No
Jornal dos Sports criou os Jogos da
Primavera em 1947, os Jogos Infantis em 1951, o Torneio de Pelada no Aterro do
Flamengo e o Torneio Rio-São Paulo, que se juntaram às suas outras criações,
como à mística do nome FlaxFlu e também a Manchete Esportiva.
Liderou, com crônicas diárias, a campanha para que o Maracanã, que hoje tem o
seu nome, fosse construído no lugar atual para a Copa do Mundo de 1950. O então
vereador Carlos Lacerda defendia a tese de que o estádio fosse construído em
Jacarepaguá e no máximo para 60 mil espectadores e não como queria Mario, para
mais de 150 mil torcedores. Mario Filho deixou várias obras literárias: Bonecas
(1927), Copa Rio Branco (1932), Histórias do Flamengo (1934), O Negro no Futebol
Brasileiro (1947), Romance do Football (1949), Senhorita (1950), Copa do Mundo
de 62 (1962), Viagem em torno de Pelé (1964), O Rosto (1965) e Infância de
Portinari (1966). Como disse seu irmão Nelson Rodrigues, Mario foi tão grande
que deveria ter sido enterrado no Maracanã.
Fonte:
http://www.literaturanaarquibancada.com/2012/05/o-negro-no-futebol-brasileiro.html