domingo, 26 de abril de 2009

Ela não queria matar Sueli

de: Ana Maria Ribas Bernadelli.

A compreensão que o mundo lhe tinha começou a se perder muito cedo. Logo em seguida, ela também perdeu a compreensão do mundo. Tornaram-se incompreensíveis: o mundo para ela e ela para o mundo. Quando menina , por volta de 4 anos de idade, houve uma amiga que se chamava Sueli. Sueli era inteira Sueli: Uma alegria espantada. Ela, contudo, sempre fora meio perplexa e inteira desamparada. Sueli era toda filha do seu Ernesto e da Dona Georgina. Ela era toda filha da perplexidade e do desamparo. Seu caminho tinha o brilho da lucidez e a sombra do mistério. Tinha dias e tinha noites. Sueli, contudo, vivia em um longo dia. Isso não impedia que fossem amigas. A criança que havia dentro de cada uma amava bonecas. As bonecas eram o elemento que as unia. A cada boneca correspondia a mãe que já existia e a pessoa que viria a existir. A boneca de Sueli era toda disponível para um mundo fácil, uma anatomia de braços e pernas que se abria de par em par. A sua, era toda protegida em camadas e camadas de pano, de maneira que para se chegar ao âmago havia que se ter certa paciência e compreensão. Sem pressa. Ela embalava a sua boneca num pedaço de lençol e arrematava com um cobertor velho, de maneira que, o contato com o mundo só acontecia através de dois olhos de espanto. Sueli embalava a sua boneca sem nenhuma proteção e assim desprotegida, a boneca de Sueli era um oferecimento tranqüilo de adesão animada. Sentavam-se as mães que já eram e as pessoas que viriam a ser, cada qual com a sua boneca, numa escadaria que havia nos fundos do depósito de grãos do armazém do seu pai. Sueli falava pela boca e pelos cotovelos, e ela não falava pela boca, só falava pelos olhos. O que ela mais gostava era do sentimento de embalar a boneca e sentir-se mãe. Ela gostava de apertar a boneca contra o peito e ficar aconchegada nessa relação de mentirinha que existia de maneira real dentro de si. Um dia, de tanto Sueli falar, falar, falar, ela implorou: "cala a boca, fica quieta, você vai acordar o meu neném." Sueli ficou quieta por uns momentos para recomeçar de novo, logo em seguida, ainda mais falante e mais Sueli. Quando ela começava a usufruir da sensação de faz de conta, Sueli abria a boca e estragava tudo. A princípio aquele comportamento indesejável foi lhe causando uma ligeira inquietação. Mas Sueli, ocupada em falar e falar, não percebia que a inquietação já se transformava em aflição e ansiedade. Até que no auge da aflição, ela avançou sobre Sueli, e num reflexo de veemência, deu-lhe uma baita tapada de boca, que a deixou momentaneamente sem ar. Quando conseguiu libertar-se da imobilidade involuntária, Sueli foi embora chorando. Ela também chorou. Depois, Sueli disse para todo mundo que ela a quisera matar. Mas ela não queria matar Sueli. Ela só queria sonhar.

(Publicação autorizada pela autora)

Publicado originalmente em:http://www.anamariaribas.com.br

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