domingo, 28 de fevereiro de 2010

Vila-Matas, espelho da nova literatura


Romancista empurra ficção para a fronteira do real ao se inspirar na vida de autores célebres e reinventar as suas histórias

Antonio Gonçalves Filho

Escrito há cinco anos e ganhador dos prêmios da Real Academia Espanhola (2006) e Mondello - Città di Palermo (2009), Doutor Pasavento (Cosac Naify, tradução de José Geraldo Couto, 412 págs., R$ 55) é o livro em que Vila-Matas mais se dedica a discutir seu tema favorito: a solução amalgamada que escritores arranjam para desaparecer em sua obra. Do suíço Robert Walser ao norte-americano Thomas Pynchon, o autor espanhol, transformado no doutor Pasavento - que, por sua vez, vira um psiquiatra -, analisa a literatura de vários escritores nesse relato ficcional sobre a solidão e a insanidade da escrita.

Um acadêmico brasileiro, Kelvin dos Santos Falcão Klein, escreveu uma dissertação de mestrado em que analisa as relações intertextuais entre sua obra ficcional e a de Jorge Luis Borges, tendo como foco a questão do parasitismo literário e das poéticas enciclopédicas. Que importância tem Borges nas estratégias metaficcionais de seus livros? E outros importantes artistas e pensadores, como Marcel Duchamp, Walter Benjamin, Roland Barthes e Maurice Blanchot, especialmente o último?

Acredito que tenha dado visibilidade a uma literatura que já estava nas livrarias, mas a que poucos prestavam atenção, como as obras de Georges Perec, Witold Gombrowicz, Pierre Michon e Robert Walser. Borges fez o mesmo nos anos 1940 com livros e autores aos quais ninguém prestava atenção, como H. G. Wells, Chesterton e tantos outros, livros que ele resenhava e ajudava a tornar populares. Borges soube, além disso, ser um homem culto, no sentido que Julio Ramón Ribeyro (escritor peruano, nascido em 1929 e morto em 1994), uma de minhas fontes de inspiração, deu a esta expressão na literatura: dominar o diferente e tornar inteligível o caos que sufoca a mente criativa. Criei, assim, um cânone sem me dar conta: um cânone muito diferente do oficial. Usei o parasitismo e a intertextualidade, mas de maneira sintática - mais da metade de minhas referências ou citações são inventadas - para a construção de meus livros. Explico isso melhor em Intertextualidade, na seção Textos, em meu site.

Quando Milan Kundera recebeu o prêmio Jerusalém, em 1985, citando Gustave Flaubert, ele disse que o objetivo de todos os escritores é desaparecer em sua obra, renunciar ao papel de homem público. Seu livro Doutor Pasavento trata exatamente desse tema. Um escritor coloca em risco a sua obra quando assume uma persona pública, quando não crê mais na eficácia de suas inovações?

Os escritores que têm uma imagem pública correm o perigo de desaparecer pouco a pouco nessa persona. O doutor Pasavento tem nostalgia da inocência, de quando escrevia sem ter ninguém para o ler nem entrevistar. Ele gostaria de não ser visto, de diluir-se nos próprios textos. Mas é difícil voltar atrás.

A estrutura fragmentária de Doutor Pasavento é um pouco como um quadro cubista de Picasso. Quando você fala dos escritores que moraram na Rua Vaneau, em Paris - Julien Green, André Gide -, e traça uma relação entre eles equivale um pouco a dizer que a situação geográfica pode ser uma relação em que o criador forja a realidade com elementos de ficção, uma espécie de ilusionismo pictórico. Você acredita que a sua seja uma literatura picassiana com a função de fazer-se passar pela realidade?

Todo escritor acredita ser um realista. Eu também. Minha realidade é estranha, mas se aproxima muitíssimo da verdade. Todos nos imaginamos realistas. Ninguém se chama a si mesmo picassiano, abstrato, ilusório, quimérico. Na realidade, se todos os escritores estão congregados sob a mesma bandeira, não é porque estejam de acordo sobre o que é o realismo: é porque querem usar uma ideia diferente de realismo para separar-se dos demais.

Você fala em Doutor Pasavento de Laurence Sterne como inventor do romance-ensaio, citando Vida e Opiniões do Cavalheiro Tristram Shandy como um de seus livros favoritos. A autorreferência, a paródia e o subjetivismo, de modo geral, se aliam para contaminar o romance. Por que você se refere ao passado literário como "shandy"?

Continuamente faço propostas que possam renovar e melhorar o romance, para que esta não volte a ser uma oficina carregada de repetições e tópicos, porque o mal da repetição, da convenção, não é que seja pouco confiável per se, mas que acaba por converter-se, mediante a repetição, em algo cada vez mais e mais convencional. O passado era "shandy"? Sim, era mais divertido e cervantino.

Vila-Matas é uma espécie de avatar de Robert Walser. Todas as vezes que alguém lhe pergunta por que é um escritor, você responde de mil maneiras diferentes, mas, em Doutor Pasavento, a resposta parece ser que você se encontra sinceramente fascinado pela ideia de escapar da escritura para contrariar os sistemas de legitimação cultural e adotar uma identidade vicária, abstendo-se de ser Vila-Matas. Você, que queria matar todos os leitores em A Assassina Ilustrada, quer matar o escritor Vila-Matas?

Respondo de distintas maneiras à pergunta se quero ser escritor porque sempre me forcei à contradição, para evitar conformar-me com meu próprio gosto. Isto que digo parece uma frase de Walt Whitman: "Contradigo-me? Pois bem, me contradigo." Nessa frase do poeta norte-americano encontrei uma outra maneira de tomar posições diante da vida e uma forma de ter, no mínimo, duas versões de um mesmo tema: o mesmo. Por isso, às vezes, brinco como o gato de Schrödinger, que encarna a paródia quântica de estar vivo e morto ao mesmo tempo. Em outras palavras, brinco de ser Hamlet e não o ser. A de ser Vila-Matas e não ser.

O cinema é uma referência forte em Doutor Pasavento. Você cita Rossellini, Scorsese, Tarkovski. Acredita que a literatura contemporânea esteja contaminada pelo cinema? De que maneira essa confluência pode criar novos conceitos e maneiras de ver o mundo?

Se me dedicasse ao cinema, seria mais revolucionário que em meus livros. Prescindiria de qualquer referência literária. Chegaria com mais frescor ao cinema e creio que traria mais novidades a uma arte que está acabada, como estava acabada a literatura quando o cinema foi inventado.

O espiritualista sueco Emanuel Swedenborg é um dos personagens de Doutor Pasavento. A influência da Swedenborg na obra literária de Jorge Luis Borges transcende o simples diálogo de ideias no campo da espiritualidade ou da filosofia. Parece mesmo que Borges teve experiências que não vacilou em classificar de místicas. Você também teve experiências sobrenaturais?

Não tive experiências místicas, mas minha espiritualidade cresceu nos últimos anos. A esse respeito, o leitor pode consultar meu livro Exploradores del Abismo (sobre a atração que solitários seres têm pelo precipício como forma de salvação).

Salinger, morto recentemente, é lembrado não só por sua literatura, que provocou impacto em sucessivas gerações, mas também por ter se transformado num mito, graças à fobia de exposição pública. Como você analisa o "desaparecimento" de Salinger nos anos 1960?

Ele se tornou demasiadamente popular. Agora vão encontrar manuscritos de Salinger até debaixo de sua cama. Prefiro pensar em Herberto Hélder, o Salinger da língua portuguesa. Que grande escritor e poeta é Hélder. Onde se esconde? Sabe se ele continua vivendo escondido na Ilha da Madeira?

A minificção é um gênero experimental que propõe uma maneira lúdica de tratar a história literária. O futuro da literatura passa por ela?

Em absoluto. Não, estou seguro que não.


Fonte: http://www.estadao.com.br/estadaodehoje/20100228/not_imp517110,0.php

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