domingo, 7 de março de 2010

Clarice Lisnpector

Que êxtase de gratidão por ter “conhecido” Clarice Lispector! Conheci-a através da famosa entrevista que ela deu pouco tempo antes de morrer, em 1977, ao jornalista Junio Lerner. Em suas poucas palavras, pareceu-me sempre restar um “algo mais” muito mais profundo que Clarice parecia querer dizer, um incomunicável que se vive. Contrastando com isso, tem a irritante e insuportável categoria do jornalista que a inquire a todo instante com um “por que”, ele quer retirar de Clarice o “conceito” e a “explicação”, e a escritora se recusa a participar desse jogo de discurso previsível. É uma pena que Lerner não tenha percebido que a dimensão do diálogo a que Clarice parecia estar aberta não era a do diálogo coerente com o raciocínio.

Assim, a partir dessa entrevista busquei conhecer um pouco da obra da escritora, e como critério, parti não da sua obra mais conhecida e famosa, mas sim das mais periféricas. Ora, o que me chamou profundamente a atenção assistindo à entrevista da Clarice, em primeiro instante, foi justamente a sua relação com a linguagem que parece ser sempre insuficiente para conseguir dizer o que se vive e experiencia: Clarice parece travar uma luta com a linguagem. De tal modo as obras mais periféricas possivelmente seriam as que teriam mais “conteúdos” ocultos nas entrelinhas, dado que uma obra literária dificilmente vem a se tornar famosa se se exige para sua “compreensão”, um distanciamento da lógica da linguagem, sem perder a própria linguagem. Em suma: “A hora da estrela” foi a obra que escolhi de Clarice para não ler, talvez em outro momento.

Li dois “pequenos” livrinhos da autora que certamente ficarão grafados na carne. Perto do coração selvagem e Um sopro de vida: pulsações. A primeira é obra da juventude de Clarice, a segunda uma publicação póstuma. Ambas me deixaram maravilhado: duas das obras escritas mais “verdadeiramente” possível, na medida em que o discurso literário é antes um mostrar-se do devir enquanto fluxo. Através delas experienciei uma leitura que foi mais um estar-junto-presenciando-a-vida-das-personagens do que uma leitura onde se junta frases para se construir um sentido: o que a autora quis dizer? – Certamente essa não é uma pergunta que se faz a


Clarice nessas duas obras.
Em Um sopro de vida: pulsações Clarice cria um autor que cria uma personagem e a partir daí a obra transcorre num fluxo de devir despreocupado com a estrutura mais formal de um romance. Para que enredo, apresentações e divisões se a vida não comporta demarcações? Precisa-se, mais do que ler, sentir e acompanhar as vivências do autor com sua personagem Ângela Pralini, que tem como fundo a própria presença de Clarice enquanto autora, por excelência, que capta o devir com seu movimento e o coloco em palavras que necessitam de um distanciamento dos sentidos mais literais e usuais para que se possa pegá-las em suas múltiplas colorações; nessa perspectiva é quase impossível não ser intensamente afetado e arrastado pelo oceano semântico criado por Clarice que nos impele para as profundezas sem-fundo das suas palavras.

O personagem “Autor” é um escritor não por ofício, mas existe enquanto escritor. E logo de início nos convida para o seu livro que também não é um livro-comum:

Este é um livro silencioso. E fala, fala baixo.

Este é um livro fresco — recém-saído do nada. Ele é tocado ao piano delicada e firmemente ao piano e todas as notas são límpidas e perfeitas, umas separadas das outras. Este livro é um pombo-correio. Eu escrevo para nada e para ninguém. Se alguém me ler será por conta própria e auto-risco. Eu não faço literatura: eu apenas vivo ao correr do tempo. O resultado fatal de eu viver é o ato de escrever. Há tantos anos me perdi de vista que hesito em procurar me en¬contrar. Estou com medo de começar. Existir me dá às vezes tal taquicardia. Eu tenho tanto medo de ser eu. Sou tão perigoso. Me deram um nome e me alienaram de mim.

Sua necessidade de criar Ângela é sua necessidade de existir, Ângela antes é a expressão e manifestação do seu sentido criativo: Ângela é a sua presa, mas também ameaça ser a caçadora, na medida em que o objeto da criação acaba se misturando com o próprio criador e daí não se vive mais separadamente.

Se nessa relação podemos levantar algumas questões que permeiam e dão o tom mais consistente dos devires entre Autor e Criação [Ângela], estas são a batalha infernal que o “escritor” [ora, entenda-se por Clarice] irá travar com a linguagem em sua insuficiência e ao mesmo tempo que é fundamental para o ser, a morte enquanto incompreensível individual que em vão busca por compreensões, o sentido das coisas que são captadas sob um fundo de sem-sentido (sem-sentido que não necessariamente se apresenta como sentido, mas pura necessidade das coisas ser como são), além de uma espiritualidade manifesta enquanto “mistério” e que se revela principalmente em Ângela tanto quanto ela se debate com a certeza da finitude.

Através das obras de Clarice encontrei-me com um mundo afirmado em sua própria inocência de ser assim tal como é, um mundo que, embora não possível de ser silenciado pelo ser que o impele para que “explique-se”, é antes de tudo contemplado pelo espanto e encanto de existir.
Abaixo separei alguns trechos que ainda estão latejando em minhas veias. Certamente que muito do selecionado envolve a diabólica e metabólica relação com a linguagem e a morte.

Tenho medo de escrever. É tão perigoso. Quem tentou, sabe. Perigo de mexer no que está oculto — e o mundo não está à tona, está oculto em suas raízes submersas em profundidades do mar. Para escrever tenho que me colocar no vazio. Neste vazio é que existo intuitivamente. Mas é um vazio terrivelmente perigoso: dele arranco sangue. Sou um escritor que tem medo da cilada das palavras: as palavras que digo escondem outras — quais? talvez as diga. Escrever é uma pedra lançada no poço fundo.

Tudo o que aqui escrevo é forjado no meu silêncio e na penumbra. Vejo pouco, ouço quase nada. Mergulho enfim em mim até o nascedouro do espírito que me habita. Minha nascente é obscura.


Estou escrevendo porque não sei o que fazer de mim. Quer dizer: não sei o que fazer com meu espírito. O corpo informa muito. Mas eu desconheço as leis do espírito: ele vagueia. Meu pensamento, com a enunciação das pala¬vras mentalmente brotando, sem depois eu falar ou escrever — esse meu pensamento de palavras é precedido por uma instantânea visão, sem palavras, do pen¬samento — palavra que se seguirá, quase imediatamente — diferença espacial de menos de um milímetro. Antes de pensar, pois, eu já pensei. Suponho que o compositor de uma sinfonia tem somente o “pensamento antes do pensamento”, o que se vê nessa rapidíssima idéia muda é pouco mais que uma atmosfera? Não. Na verdade é uma atmosfera que, colorida já como símbolo, me faz sentir o ar da atmosfera de onde vem tudo. O pré-pensamento é em preto e branco. O pensamento com palavras tem cores outras. O pré-pensamento é o pré-instante. O pré-pensamento é o passado imediato do instante. Pensar é a concretização, materialização do que se pré-pensou. Na verdade o pré-pensar é o que nos guia, pois está intimamente ligado à minha muda inconsciência. O pré-pensar não é racional. É quase virgem.

Às vezes a sensação de pré-pensar é agônica: é a tortuosa criação que se debate nas trevas e que só se liberta depois de pensar — com palavras.

É o meu interior que fala e às vezes sem nexo para a consciência. Falo como se alguém falasse por mim. O leitor é que fala por mim?

(…) Ângela de pé junto a mim. Ei-la que se aproxima um pouco mais. Depois senta-se ao meu lado, debruça o rosto entre as mãos e chora por ter sido criada. Consolo-a fazendo-a enten¬der que também eu tenho a vasta e informe melancolia de ter sido criado. Antes tivesse eu permanecido na imanescença do sagrado Nada. Mas há uma sabedoria da natureza que me faz, depois de criado, mover-me sem que eu saiba para que servem as pernas. Ângela, eu também fiz meu lar em ninho estranho e também obedeço à insistência da vida. Minha vida me quer escritor e então escrevo. Não é por escolha: é íntima ordem de comando.

Faço o possível para escrever por acaso. Eu quero que a frase aconteça. Não sei expressar-me por palavras. O que sinto não é traduzível. Eu me expresso melhor pelo silêncio. Expressar-me por meio de palavras é um desafio. Mas não correspondo à altura do desafio. Saem pobres palavras. E qual é mesmo a palavra secreta? Não sei e por que a ouso? Só não sei porque não ouso dizê-la?

Eu adivinho coisas que não têm nome e que talvez nunca terão. É. Eu sinto o que me será sempre inacessível. É. Mas eu sei tudo. Tudo o que sei sem propriamente saber não tem sinônimo no mundo da fala mas me enriquece e me justifica. Embora a palavra eu a perdi porque tentei falá-la. E saber-tudo-sem-saber é um perpétuo esquecimento que vem e vai como as ondas do mar que avançam e recuam na areia da praia. Civilizar minha vida é expulsar-me de mim. Civilizar minha existência a mais profunda seria tentar expulsar a minha natureza e a supernatureza. Tudo isso no entanto não fala de meu possível significado. O que me mata é o cotidiano. Eu queria só exceções. Estou perdida: eu não tenho hábitos.

Eu escrevo por intermédio de palavras que ocul¬tam outras — as verdadeiras. É que as verdadeiras não podem ser denominadas. Mesmo que eu não saiba quais são as “verdadeiras palavras”, eu estou sempre aludindo a elas. Meu espetacular e contínuo fracasso prova que existe o seu contrário: o sucesso. Mesmo que a mim não seja dado o sucesso, satisfaço-me em saber de sua existência.

Amo Ângela Pralini porque me permite que eu durma enquanto ela fala. Eu que durmo para uma certa experiência preparativa da morte. Experiência do curso primário porque a morte é tão incomensurável que me perderei nela. Não — para falar sinceramente — não permito que o mundo exista depois de minha morte. Dou remorsos a quem eu deixar vivo e vendo televisão, remorsos porque a humanidade e o estado de homem são culpados sem remissão de minha morte.

Descobri que eu preciso não saber o que penso — se eu ficar consciente do que penso, passo a não poder mais pensar, passo a só me ver pensar.

Eu sinto uma beleza quase insuportável e indes¬critível. Como um ar estrelado, como a forma informe, como o não-ser existindo, como a respiração es¬plêndida de um animal. Enquanto eu viver terei de vez em quando a quase-não-sensação do que não se pode nomear. Entre oculto e quase revelado. É também um desespero faiscante e a dor se confunde com a beleza e se mistura a uma alegria apocalíptica.

Esta noite tive um sonho dentro de um sonho. Sonhei que estava calmamente assistindo artistas traba¬lharem no palco. E por uma porta que não era bem fechada entraram homens com metralhadoras e mataram todos os artistas. Comecei a chorar: não queria que eles estivessem mortos. Então os artistas se levantaram do chão e me disseram: nós não estamos mortos na vida real, só como artistas, fazia parte do show esse morticínio. Então sonhei um sonho tão bom: sonhei assim: na vida nós somos artistas de uma peça de teatro absurdo escrita por um Deus absurdo. Nós somos todos os participantes desse teatro: na verdade nunca morreremos quando acontece a morte. Só morremos como artistas. Isso seria a eternidade?

Ângela.- Uma ânsia. Queria poder viver tudo de uma só vez e não ficar vivendo aos poucos. Mas aí viria a Morte.

Quando eu morrer não saberei o que fazer de mim. / Deve haver um modo de não se morrer, só que eu ainda não descobri. Pelo menos não morrer em vida: só morrer depois da morte. / O mundo está ficando cada vez mais perigoso para mim. Depois de morta, cessará o perigo periclitante. Respirar é coisa de magia. / Quero que meu fim seja tão inevitável como a morte: o meu fim na vida será possuir. Eu sou virgem. / Eu quase que já sei como será depois de minha morte. A sala vazia o cachorro a ponto de morrer de saudade. Os vitrais de minha casa. Tudo vazio e calmo.

A incomunicabilidade de si para si mesmo é o grande vórtice do nada. Se eu não acho um modo de falar a mim mesmo a palavra me sufoca a garganta atravessando-a como uma pedra não deglutida. Eu quero ter acesso a mim mesmo na hora em que eu quiser como quem abre as portas e entra. Não quero ser ví¬tima do acaso libertador. Quero eu mesmo ter a chave do mundo e transpô-lo como quem se transpõe da vida para a morte e da morte para a vida.

Na hora de minha morte — que é que eu faço? Me ensinem como é que se morre. Eu não sei.

Postado originalmente em:
http://www.eternoretorno.com/2010/03/03/clarice-lispector-a-rainha-do-sem-sentido/

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