quarta-feira, 17 de agosto de 2011

Ícone moderno

 

Revista de História

Livro 'O risco - Lucio Costa e a utopia moderna' traça o percurso de vida e as obras do arquiteto que chamava Brasília de 'a cidade que inventei'

Luiz Cruz

Fachada norte do edifício Gustavo Capanema, no Centro do Rio

Fachada norte do edifício Gustavo Capanema, no Centro do Rio

Iluminado. Assim vamos encontrar Lucio Costa no livro “O risco - Lucio Costa e a utopia moderna”, editado por Sesc/RJ e CEF. Geralmente um livro pode virar filme. Este é o contrário, foi o filme de Geraldo Motta Filho que virou livro. Um belo livro, todo em páginas pretas, num bonito projeto gráfico para mostrar a grande figura da arquitetura moderna brasileira. “O risco” traz uma série de depoimentos de pessoas da família, amigos, companheiros de trabalho e admiradores. É obra que contribui muito para entendermos a trajetória do arquiteto.

Lucio Marçal Ferreira Ribeiro Lima Costa nasceu em Toulon, França, em 27 de fevereiro de 1902 e faleceu no Rio de Janeiro, no dia13 de junho de 1998. Ele foi “um pensador, muito mais do que mero arquiteto ou urbanista”, segundo depoimento do arquiteto Lauro Cavalcanti. Iniciou sua formação na França, depois na Suíça e, posteriormente, na Inglaterra. Retornou ao Brasil para cursar a Escola Nacional de Belas Artes. Logo que se formou, em 1924, instalou seu escritório de arquitetura em parceria com Gregory Warchavchik – russo, com formação na Itália, que se mudou para o Brasil em 1923 e foi o precursor da arquitetura moderna em São Paulo. O escritório da dupla se tornaria num reduto de puristas (em oposição ao neocolonial, cheio de detalhes), procurado por jovens arquitetos. Em 1930, foi convidado a dirigir a Escola de Belas Artes e conseguiu inovar todo o sistema de ensino. Uma das consequências foi o Salão Nacional de Arte, de 1931, que tornou-se uma referência das artes plásticas.

Um pouco antes disso, foi criado o Sphan – Serviço do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (hoje Iphan), ligado à trajetória do arquiteto. Ele integrou a equipe técnica do instituto a partir de 1937 e lá ficou até se aposentar, em 1972. O Sphan nasceu como resultado das propostas dos modernistas brasileiros. Em 1924, foi realizada a conhecida expedição a Minas, que tinha como objetivo uma “redescoberta” do se havia produzido de arte no Brasil. Dela faziam parte: Mario de Andrade, Oswald de Andrade e seu filho Nonê, Tarsila do Amaral, Olívia Guedes Penteado, René Thiollier, Gofredo da Silva Telles e o poeta franco-suíço Blaise Cendrars. Encontraram tesouros, além de sítios correndo grave risco de se perderem devido ao total abandono. Foi a partir dessa expedição que se iniciou a preocupação para a preservação patrimônio cultural. O texto do Decreto-Lei Nº 25, de 30 de novembro de 1937, teve redação de Mario de Andrade, com orientação jurídica de Rodrigo Mello Franco de Andrade, que era advogado e foi o primeiro diretor do órgão, dirigindo-o por 30 anos. Rodrigo conseguiu formar um grupo de apoio expressivo, envolvendo várias figuras como Carlos Drummond de Andrade, Manuel Bandeira, Mario de Andrade e outros.

Em 1935, por meio de edital publicado em 23 de abril, foi realizado um concurso para a escolha do projeto arquitetônico para a nova sede do Ministério da Educação, Cultura e Saúde. A proposta vencedora foi de Archimedes Memória, de inspiração “marajoara”. O vencedor recebeu o prêmio, mas o projeto não foi executado. Como naquele momento predominava a influência “modernista”, em circunstância deliberada por Drummond, o ministro Gustavo Capanema, convidou Lucio Costa para criar o projeto para a sede do ministério.

Lucio monta, então, uma equipe para desenvolver a proposta, fazendo parte dela Carlos Leão, Jorge Moreira, Ernani Vasconcellos, Affonso Eduardo Reidy. Oscar Niemeyer trabalhava juntamente com Lucio, em seu escritório, mas não se sentia parte da equipe – estava aprendendo. Porém, deu contribuições expressivas para a elaboração do projeto.

Foi o Lucio Costa quem sugeriu que se convidasse o arquiteto Charles Edouard Janneret, mais conhecido por Le Corbusier, para prestar uma consultoria durante a elaboração do projeto para a sede do Ministério da Educação, Cultura e Saúde, depois Palácio da Cultura e atualmente Palácio Gustavo Capanema. O arquiteto passou seis semanas no Brasil e fez muitas sugestões, mas predominou a inspiração dos arquitetos brasileiros e o prédio ficou com as características leves e sobre pilotis elegantes. Enquanto a obra deste arquiteto é pesada, extremamente arrojada. O oposto desenvolvido pela arquitetura moderna brasileira, que foi reconhecida internacionalmente pela ousadia e inovação.

O edifício é considerado um marco no estabelecimento da arquitetura moderna brasileira, tendo-se tornado referência internacional. Foi a grande atração da mostra “Brasil Builds”, realizada no Museum of Modern Art of New York, de 1943, e referência na revista francesa “Architecture D’Aujourd’hui”, de 1947.

 

Lucio Costa foi um homem do patrimônio. Ele dizia que só é possível revolucionar o futuro se você conhecer bem o passado. E como arquiteto e urbanista, ele mergulhou profundamente no passado. Sua viagem a Diamantina, em 1924, marcou para sempre sua vida profissional. Ele se encantou pela cidade, organizada e instalada num lugar isolado, onde a pedra predominava. Depois, a convite de Rodrigo Melo Franco de Andrade, pelo Iphan, realizou duas longas viagens por Portugal coletando informações para redigir um trabalho mais amplo sobre a origem de nossa arquitetura. Como Lucio Costa foi postergando a redação do trabalho e Rodrigo tinha pressa em ver resultados, decidiu, então, convidar Germain Bazin, do Museu do Louvre, que prontamente aceitou o convite e redigiu “L’architecture religieuse baroque au Brésil”, Paris, Plon, 1956. Lúcio ficou inconformado, achou que tinha sido traído por Rodrigo, mas suas viagens a Portugal resultaram em cadernos com muitos desenhos e informações. Se Lucio não redigiu o trabalho, as viagens muito contribuíram para o entendimento da formação das antigas vilas portuguesas e nossas cidades.

“A cidade inventada”. Assim, o arquiteto e urbanista se referia à Brasília, cidade que ele criou. Isto surgiu em decorrência a uma série de críticas que fizeram sobre a nova capital brasileira. Uma capital instalada no nada, sem referência, sem memória, apenas implantada no centro do País, no cerrado. Onde predominavam árvores retorcidas e terra vermelha (um lugar totalmente desconhecido no aspecto ambiental). Lucio não compareceu à inauguração de Brasília. Só a visitou depois de muitos anos, acompanhado de sua filha, Maria Elisa Costa, também arquiteta, e ficou encantado com sua criação, ao constatar que lá já havia uma geração de pessoas nascidas na cidade, havia vida própria. E era uma cidade com alma. “A cidade que inventei”. Esta passa a ser a referência que Lucio Costa utilizava após sua visita.

Essa “invenção” aconteceu após o retorno de uma de suas muitas viagens. Após desembarcar, pôs-se a trabalhar. Havia se inscrito no concurso para a criação do Plano Urbanístico de Brasília. Trabalhou silenciosamente durante dois meses em casa e em seu escritório. Apenas sua filha sabia o que se passava em sua cabeça. No dia 10 de março de 57, poucos minutos antes de encerrar o prazo de inscrições, Maria Elisa Costa entrega o projeto criado seguindo os preceitos da Carta de Atenas, documento elaborado em 1933, pelo Congresso Internacional de Arquitetura Moderna. Era uma proposta diferente, um projeto literário e muitos desenhos feitos a lápis de cor.

A comissão julgadora era composta pelo sir William Holford, urbanista inglês, André Sive, Stamos Papadaki, Oscar Niemeyer, Luiz Hildebrando Horta Barbosa e Paulo Antunes Ribeiro. À primeira vista, tudo parecia confuso, mas após a terceira leitura, sir Holford entendeu e clamou que estava diante da maior contribuição urbanística do século XX. O projeto de Lucio Costa foi o vencedor e Oscar Niemeyer foi o arquiteto escolhido para criar as edificações. Assim, Brasília saiu do papel e se tornou realidade.

Em 1962, Darcy Ribeiro era o ministro da Educação e Cultura, no Governo de João Goulart, e trouxe novamente ao Brasil Le Corbusier. Um dos pontos visitados por ele foi o Parque Guinle, projetado por Lucio Costa, com amplo uso de treliças e bastante inspirado na arquitetura colonial mineira. Ítalo Campofiorito foi o escolhido para acompanhar o arquiteto, inclusive a visita à Brasília. Ítalo registrou as impressões do famoso urbanista franco-suíço em “O risco”, que disse: “eles conseguiram uma coisa que nunca consegui. Mas contavam com uma coisa que eu nunca tive ao meu lado: a autoridade”. E continuou: “Essa cidade foi pensada par un type”. Mais adiante: “O que é bom nessa cidade é que ela tem uma alma”. A visita dele e os registros de suas impressões são um presente à capital brasileira, uma cidade símbolo do modernismo, da ousadia do brasileiro.

No mesmo livro “O risco - Lucio Costa e a utopia moderna”, vamos encontrar depoimentos impressionantes, especialmente o de Sergio Ferro que apresenta um enorme contraste sobre o clima de sonho e prosperidade que tomou conta dos anos em que se construía Brasília e a triste realidade do dia a dia da construção, das péssimas condições oferecidas aos operários, uma mão-de-obra sem qualificação alguma. Milhares de homens que enfrentavam jornadas enormes de trabalho, com alimentação precária. Cercados e ameaçados. Segundo Sergio Ferro, o sofrimento era tanto que muitos operários se suicidaram. Jogaram-se embaixo de caminhões, desesperados, com fome, diarreia e impossibilitados de sair de lá. Um contraste entre a proposta de Lucio Costa e Niemeyer e, principalmente, o discurso oficial de Juscelino Kubitscheck e a realidade.

A memória de Lucio Costa é preservada através da ONG Casa Lucio Costa, criada no Rio de Janeiro, para reunir sua vasta coleção de documentos, desenhos e projetos. Mais informações podem ser obtidas através do site: www.casadeluciocosta.org/

Luiz Cruz é professor de Línguas e Educação Patrimonial, vive em Tiradentes/MG

Referência Bibliográfica:

AMARAL, Aracy A. Blaise “Cendras no Brasil e os modernistas”. São Paulo: Ed.34/FAPESP, 1997.

CAVALCANTI, Lauro Pereira. “Moderno e brasileiro: a história de uma nova linguagem na arquitetura”. Rio de Janeiro: Jorge Zahah Ed., 2006.

WISNIK, Guilherme –Organização. O risco - Lucio Costa e a utopia moderna”. Coordenação de projeto: Juliana Simões de Carvalho e Geraldo Motta Filho. Apoio Cultural SESC/RJ e outros

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