Os censores portugueses do século XVIII afirmavam que os romances eram um “veneno” que podia corromper a alma e o coração dos leitores
Márcia Abreu
Quando o português José Anastácio da Cunha foi preso, em 1° de julho de 1778, deve ter se perguntado qual de seus desvios de conduta o tinha levado àquela triste situação. Doze testemunhas o haviam denunciado às autoridades como “libertino”, pois lia livros proibidos, convivia com hereges protestantes, discutia pontos de religião e vivia com uma amante. Os mais minuciosos lembraram-se de que ele comia carne em dias proibidos e pão com manteiga em dias de jejum. Outros garantiram que José Anastácio mostrava pouca reverência quando estava dentro de igrejas ou assistindo à missa, e que dizia serem dispensáveis os preceitos da religião.
Os inquisidores que o interrogavam não tiveram dúvidas: era realmente um libertino. Sua libertinagem envolvia a tolerância religiosa, a reflexão política, o pensamento científico, o questionamento dos dogmas da Igreja, a leitura de livros proibidos, a composição de versos eróticos, uma sexualidade ativa, e alguma galhofa – como tomar uns pileques e celebrar as exéquias de um cão. Do ponto de vista das autoridades, com esse comportamento ele arriscava não só sua própria alma, mas punha em perigo a sociedade à sua volta. Seu condenável “exemplo” poderia estimular outras pessoas a seguir o mesmo caminho.
Em seus depoimentos, confirmou ter lido e discutido sobre religião com seus companheiros, com os quais conversava também sobre “matérias amorosas” que liam em passagens de “Voltaire, e mais em Horácio, Ovídio, e Pope”, e que traduziam para se “entreterem, e divertirem”. Ler, como José Anastácio pôde sentir na carne, era muito perigoso. Praticamente desde o início da imprensa, as autoridades lusitanas se preocuparam em controlar estritamente o que se imprimia em Portugal, estabelecendo um sistema de censura prévia que exigia a obtenção de três licenças – dos juízes eclesiásticos ligados às dioceses, do Tribunal do Santo Ofício e do Desembargo do Paço – para que se publicasse qualquer livro ou papel. Esse sistema tríplice esteve em vigor até 1768, quando se unificou a atividade censória em uma única instituição (denominada, de 1768 a 1787, Real Mesa Censória, e entre 1787 e 1794, Real Mesa da Comissão Geral sobre o Exame e Censura dos Livros). Depois de uma experiência de mais de vinte anos de censura a cargo de uma única instituição, o poder real decidiu voltar ao sistema tríplice, fazendo com que passasse a ser novamente necessário conseguir três autorizações para imprimir qualquer texto escrito.
Controlar a impressão de obras não parecia suficiente para evitar agitações políticas e religiosas. Por isso, a censura fiscalizava também a circulação de livros já impressos, especialmente os vindos do exterior. Para viajar de Lisboa a Coimbra, por exemplo, com um livro na mala, era preciso obter a aprovação dos organismos de censura. Maior controle ainda era mantido no envio de livros de Portugal para suas colônias, especialmente o Brasil.
Entre os livros mais perseguidos estavam os romances licenciosos ou libertinos. Assim como na vida libertina de José Anastácio da Cunha, essas obras misturavam religião, política e sexo. Nelas cabiam desde histórias em que se acumulavam relações e parceiros sexuais até enredos em que se punham em cena estratégias para a obtenção de favores amorosos, superando obstáculos de natureza moral, religiosa ou social. Juntavam-se a essas manobras discussões e narrativas sobre a atuação dos nobres e dos políticos, bem como debates sobre o papel da religião e do instinto, da força da natureza e a da cultura. Por isso, essas narrativas pareciam muito desaconselháveis, levando os organismos de censura a fazer todos os esforços para proibir a circulação e a leitura desses livros.
Em 1768, o censor Antônio Pereira de Figueiredo teve de se pronunciar sobre a possibilidade de autorizar a circulação de um desses livros: Les amours de Tibulle. (“Os amores de Tíbulo”). Após lê-lo, afirmou que escritos desse tipo “mais podem servir de ruína que de instrução para os leitores”. O autor da obra, M. de la Chapelle, consciente do mau juízo que os letrados faziam sobre os romances, tentara defender ao menos o seu, dizendo, no prefácio, que sua obra se deve “reputar uma espécie de caridade para com aquelas Pessoas que, não podendo passar sem algum prazer ou divertimento, e não estando dispostas nem acostumadas a buscá-los no exercício das virtudes e conselhos evangélicos, gostam de se entreter com a lição de semelhantes Novelas”. Buscando ser convincente, La Chapelle arriscava uma comparação: “É o mesmo que costumam praticar os médicos com aqueles enfermos a quem a febre tem tirado o gosto dos bons manjares, porque a estes lhes costumam permitir e ainda aconselhar os comeres menos nocivos para desta sorte os retraírem dos mais prejudiciais”.
Essa envergonhada defesa do gênero mantinha a carga pejorativa que pesava sobre os romances em geral, e sobre os libertinos em particular, elegendo as pessoas intelectualmente fracas – tão fracas que poderiam ser comparadas aos doentes – como destinatários principais desses textos. O censor não se convenceu: “Acaso poderá negar que nenhuma coisa estraga mais a inocência e a pureza dos costumes que a lição de amores furtivos e de intrigas amorosas; principalmente quando as que as exercitam são sujeitas de um caráter lascivo e desenvolto, quais são pela maior parte os que nesta Novela fazem as principais figuras?”
Todo o problema estava na matéria tratada na narrativa, que tinha por objeto a história dos amores de um poeta, vítima das intrigas de diversos rivais, e de “desenvoltas” damas, que viviam na “devassidão de uma Corte corrupta e gentílica”. O contato com amores extraconjugais praticados pelas altas esferas da sociedade, onde grassava a falta de religião, “não pode produzir outros efeitos”, segundo o censor, que não o de “incitar os Leitores a praticarem ou ao menos apetecerem o mesmo que tem sido praticado e apetecido pelos outros”, levando ao “perigo de perdermos a inocência”. Ou seja, não havia como ler e não conceber o propósito de imitar os personagens – na prática ou na fantasia.
A forma romanesca parecia especialmente apta a desempenhar esse papel, pois se acreditava que a observação de exemplos de conduta teria o poder de alterar convicções e comportamentos. O filósofo francês Denis Diderot foi um dos letrados que defenderam essa idéia. No elogio fúnebre que dedicou ao romancista inglês Samuel Richardson em 1761, afirmou que a eficácia dos romances advinha do fato de eles apresentarem uma “moral em ação”, isto é, de criarem uma situação concreta em que aplicar uma idéia moral e de exporem os resultados desta aplicação. Por isso, os romances seriam infinitamente superiores aos livros de máximas, que pretendiam moralizar apenas por meio da reflexão.
Os censores, em geral, compartilhavam as convicções de Diderot, o qual acreditava que, ao ler um romance, o leitor “vê” as atitudes dos personagens, “coloca-se no lugar deles” ou “ao seu lado”, fazendo com que as “imagens” apresentadas sejam “fixadas” em sua “mente”. Entretanto, enquanto Diderot confiava no discernimento de seus contemporâneos, acreditando que seu interesse se voltaria para os personagens virtuosos, os censores pensavam que a lascívia e as cenas impudicas poderiam ser mais atraentes, sobretudo quando ao enredo “amatório” se associava um estilo eloqüente.
Em 1783, ao examinar o livro Les Égarements de l’Amour, ou Lettres de Fanoelli et de Milfort (“Os desvarios de amor, ou cartas de Fanoelli e de Milfort”), o censor Fr. Luís de Santa Clara Póvoa preocupou-se não só com “os erros e extravagâncias do amor profano” ali apresentados, mas principalmente com seu estilo, acreditando que havia no livro “rara eloqüência” e “persuasão admirável”. Santa Clara Póvoa se preocupava com o que se poderia aprender lendo essa narrativa: “neste Livro podem encontrar os Libertinos bastantes Lições para aumentarem a Sua corrupção”, dizia. Ele acreditava estar diante de um texto persuasivo, capaz de conduzir os leitores à superação de eventuais resistências à prática do amor carnal: “se eles encontrarem nos exercícios do amor profano resistências, repugnâncias, dificuldades, não têm mais que instruírem-se bem na Leitura deste Romance e chegarão talvez sem dúvida ao depravado fim das suas perversas intenções.”
Algumas vezes, a “lição” ministrada pelos romances podia ser bastante prática. O censor José Mayne, ao examinar, em 1788, o livro Escolha das melhores novelas e contos morais, de Arnaud e Marmontel, assustou-se com o grau de explicitação da matéria, observando a maneira como ali se descreviam as “loucuras dos namorados”. Ele espantou-se ao ver como os autores davam “cores tão vivas aos gestos encantadores, às frases maviosas, à muda eloqüência dos olhos, e a outros desvarios dos Amantes, que lembram o último ponto, em que termina a paixão, ou a desonestidade Sensual”. Em seu parecer, o rigoroso censor chegou a copiar trechos do livro que lhe pareciam excessivamente instrutivos sobre as práticas amorosas. Na narrativa intitulada “O escrupuloso, ou amor descontente de si mesmo”, admirou-se com a desenvoltura da personagem Beliza, que dizia a seu parceiro Lindoro: “Cala-te, tolinho, faze o que deves como namorado (...) Dá-me um abraço”. Não menos admirado ficou com a descrição feita pelo narrador dos efeitos das liberdades tomadas pelos jovens: “Vários acentos não articulados supriam as palavras, e dobravam a energia deles certo gesto veemente com certa ação impetuosa. Esta patética eloqüência pôs a Silana fora de Si etc etc.”
Nem é preciso dizer que o censor concluiu pelo perigo de se facultar a leitura de uma obra que “pode resultar mais em ruína do que aproveitamento moral aos leitores”, ruína da qual não escapariam nem os já experientes nas práticas do amor nem os ainda inexpertos.
As situações e as idéias contidas nos romances eram compreendidas pelos censores como argumentos de persuasão, agindo como “lições”, às quais se acrescia o estilo, a “rara eloqüência” com que os textos eram escritos, formando um conjunto que, seguramente, contribuiria para modificar o comportamento dos leitores, ou para reafirmá-lo, caso já tivessem adotado o estilo de vida ali representado. Os romances licenciosos agenciariam, portanto, os três modos de persuasão previstos pela retórica clássica: a persuasão lógica, que conduz ao convencimento; a persuasão afetiva, que leva à comoção; e a persuasão estética, que propicia o deleite.
Essa “lição” parecia totalmente inapropriada, pois idéias desse tipo poderiam “ser origem de conseqüências espantosas à Sociedade civil, e à verdade, e Santa doutrina”, como escreveu Fr. José Mayne, em parecer preparado em 1787, a propósito do livro Cartas de uma filha a seu pai. Deixando correr livremente obras desse tipo, seria impossível “atalhar o progresso do Contágio, principalmente nos sujeitos inexpertos, fracos, amantes da novidade, e onde o fogo da imaginação se une ao calor das paixões sensitivas”.
A associação entre a leitura de romances e as doenças, capazes de “contagiar”, era uma idéia comum. Os mais complacentes, como o já mencionado M. de la Chapelle, comparavam os romances a um remédio oferecido aos estômagos fracos. Os menos condescendentes com o gênero, como os censores portugueses, associavam-no a um “veneno” cuja “peçonha” seria capaz de “corromper” o “coração” e a “alma” dos leitores.
A preocupação com o efeito nocivo da imaginação e das paixões sobre a saúde dos leitores não era exclusiva dos censores. A medicina do século XVIII postulava que os processos mentais tinham necessariamente contrapartidas físicas, idéia extraordinariamente difundida a partir da publicação, em 1766, do livro De la santé des gens de lettres (“Da saúde dos homens de letras”), do médico suíço Samuel-Auguste Tissot. Ele explicava o processo dizendo que “a união do espírito e do corpo é, com efeito, tão forte que é difícil conceber a ação de um deles sem que o outro se ressinta mais ou menos dessa ação.” Acreditava-se na força de “simpatia”, ou seja, na existência de uma estreita interligação entre as partes do corpo, mesmo entre aquelas cujas funções pareceriam bastante distintas. Os nervos seriam os instrumentos principais dessa articulação, pois por seu intermédio se produziriam não apenas as sensações e os movimentos, mas também, pela simpatia, a interligação de todo o sistema. Por isso a leitura e a meditação, operando sobre o cérebro e sobre os nervos, teriam conexões em diferentes partes do corpo. Segundo Tissot, a leitura “usa o espírito e esgota o corpo”, sobrecarregando especialmente o cérebro, os nervos e o estômago.
Os riscos a que se submetia todo aquele que fizesse um esforço intelectual valiam a pena quando o produto dessa atividade era útil para a sociedade ou para as letras. O mesmo não se podia dizer quando o cérebro e o corpo eram postos a trabalhar em função da leitura de um romance licencioso. Eles eram especialmente perigosos, pois estimulavam uma “simpatia” muito peculiar: aquela que se observava entre o cérebro, os testículos e os olhos. Em outra de suas obras muito populares, L’Onanisme, publicada em 1760, o médico suíço narrava casos como o de um homem cujo cérebro secou, “de uma maneira tão prodigiosa que era possível ouvi-lo balançar dentro do crânio”, devido aos “excessos” nas práticas masturbatórias. Uma vida sexual intensa também poderia ser muito perigosa. Tissot garantia ter visto “um homem de 59 anos que, três semanas após ter se casado com uma jovem moça, foi tomado de uma cegueira e morreu no fim de quatro meses.”
Se a medicina da época temia que a leitura e a meditação intensas esgotassem o corpo, causando, sobretudo, distúrbios nervosos e digestivos, maior ainda era sua preocupação diante da leitura de romances licenciosos que, como dizia Rousseau, tinham de ser lidos “com uma só mão”. Os efeitos da leitura desses livros poderiam levar ao esgotamento do líquido seminal, o que trazia, necessariamente, diversos e importantes prejuízos para a saúde. Sequer era necessário chegar à prática, pois, segundo Tissot, um excesso de pensamentos lascivos bastava para produzir doenças graves, como a varicocele e a hidrocele. A imaginação era uma faculdade a ser temida, pois desempenhava um papel particularmente relevante na conexão entre corpo e espírito – ou alma.
Tais idéias não eram estranhas aos letrados portugueses que compartilhavam as preocupações de Tissot e desejavam controlar a difusão de pensamentos e práticas lascivos, pois eles poderiam levar à disseminação de idéias perigosas como as que se difundiram em Valença do Minho e levaram José Anastácio da Cunha a defender o Tolerantismo, acreditando que cada um poderia pensar livremente sobre temas de religião “e que era impiedade e tirania obrigar os homens a cativar os seus entendimentos e discursos a algumas regras, Leis, e preceitos”.
A leitura de livros licenciosos poderia alterar não apenas a maneira de pensar, mas o modo de agir, como também mostrou o caso de José Anastácio, que acreditava não haver pecado em “gozar com a mais plena liberdade, sem os encargos do Matrimônio, dos prazeres sensuais, não os tendo por ilícitos, nem pecaminosos”.
Mais grave ainda, a lascívia poderia causar sérios danos à saúde daqueles que lessem em demasia e principalmente daqueles que se exercitassem muito nas práticas “amatórias” – solitariamente ou bem acompanhados.
Assim, as narrativas licenciosas faziam pensar sobre religião e poder. Faziam também sentir e desejar. Podiam até mesmo trazer conseqüências físicas para os corpos dos leitores. Nada poderia parecer mais perigoso – ou fascinante.
Márcia Abreu é professora de Literatura do Instituto de Estudos da Linguagem da Unicamp e autora do livro Os caminhos dos livros. Campinas: Mercado de Letras, ALB; São Paulo: Fapesp, 2003.
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